Título: À espera de uma Constituição definitiva
Autor: César, Aloísio de Toledo
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

É possível que o Brasil esteja perdendo a rara oportunidade de obter uma Constituição federal definitiva e diversa da que temos hoje, marcada pela provisoriedade e complexidade. Sua complexidade, sobretudo, representa um verdadeiro inferno para os brasileiros, dada a interpretação variada e conflitante que dela fazem os juízes, perpetuando os conflitos.

Como se estivesse sobre o efeito de um sonífero, dormita no Congresso Nacional, mas já aprovada pela Comissão Especial, a proposta de revisão constitucional que prevê para o dia 1º de fevereiro de 2007 a instalação da Assembléia de Revisão Constitucional. O prazo para decidir sua inclusão na pauta do Congresso vai tão-somente até o final do ano, significando que esta é uma das prioridades a serem enfrentadas pelos congressistas antes do recesso.

O projeto é do deputado federal Luiz Carlos Santos (PFL-SP) e objetiva a convocação, assim como ocorreu em Portugal, de uma assembléia nacional destinada a promover revisão constitucional de verdade, e não apenas a reforma por emendas esporádicas, quase todas de interesse só do Executivo, como vem ocorrendo há 18 anos.

O projeto passou pela Comissão de Constituição e Justiça e, em seguida, o deputado federal Roberto Magalhães (PFL-PE), relator da Comissão Especial, emitiu parecer favorável, faltando, agora, a sua aprovação por três quintos da Câmara, em dois turnos, e depois no Senado, também por três quintos e em dois turnos.

Quando esses fatos se tornaram de domínio público, alguns meses atrás, o presidente Lula teve a infelicidade de se proclamar favoravelmente à instalação dessa nova Assembléia Nacional Constituinte. Bastou isso para que aquela metade do Brasil que não o apóia entoasse em coro um canto lúgubre, como o das feiticeiras quando deitam fora suas previsões de mau agouro.

Enfim, por razões preferencialmente políticas e partidárias, e quem sabe até pessoais, essa grita condenou a pretensão, sem se deter no essencial, ou seja, na análise das necessidades jurídicas e prementes de uma nova Constituição definitiva para o Brasil, impermeável a tantas mudanças.

Quando foi promulgada, todos lembramos, o Brasil saía de um lamentável período de ditadura. Principalmente aqueles que haviam sofrido os seus efeitos, como Ulysses Guimarães, Mário Covas e tantos outros, se encontravam em posição política fortalecida e em condições de ditar os novos rumos da História brasileira. O resultado foi a aprovação de uma Constituição, apelidada de 'cidadã', que exprimiu o horror à ditadura, mas cometeu o equívoco de não ser mais simples, nem mais clara. Hoje, para os juízes, é um verdadeiro inferno ter de interpretá-la.

Um dos seus principais vícios, reconhecidos quase por unanimidade entre os constitucionalistas, está nos casuísmos e em tudo prever, tudo regular, transformada num variado repertório de temas próprios de leis infraconstitucionais, ou seja, situações que refletiram o totalitarismo normativo que dominou o País naquele momento de fim da ditadura.

Mas o pecado maior, certamente, foi o de ter assumido a feição de ser provisória, de estar em permanente alteração. Sua instabilidade está expressa nas 52 emendas constitucionais já sofridas, em apenas 18 anos de existência, além de quase 2 mil projetos de emendas em tramitação.

Para se ter idéia de como isso é absurdo, basta olhar para o exemplo da Constituição dos EUA, que, em 216 anos, sofreu apenas 26 emendas, surgindo como um caminho que, infelizmente, não foi trilhado pelos constituintes brasileiros (ao contrário, foi propositadamente repudiado).

Ao ser publicada, com a feição de provisoriedade já referida, a nova Constituição acabou por criar, extinguir ou modificar uma infinidade de direitos. O resultado foi uma verdadeira avalanche de processos rumo ao Judiciário, talvez a maior vítima da Constituição provisória.

Havia, ao que parece, uma litigiosidade contida, que repentinamente aflorou e foi exercida legitimamente, mas sem que o Judiciário estivesse preparado para recebê-la. Em conseqüência, entupido de processos que não consegue julgar com a rapidez necessária, o Judiciário teve sua imagem gravemente afetada pela descrença pública, algo extraordinariamente grave numa democracia que pretende ser livre e soberana.

A grande maioria da população não tem consciência disso, mas a cada emenda constitucional surge uma nova enxurrada de processos que atravancam ainda mais o Judiciário.

Não há estabilidade jurídica ou institucional que resista a essas alterações constantes. A máquina do Judiciário é cara e por isso não tem adiantado nomear mais juízes, nem novos servidores. Enquanto não emergir a necessária alteração sistêmica do texto constitucional, que preserve as cláusulas pétreas, adaptando-as à nova realidade brasileira, expurgando tudo o que é próprio da legislação infraconstitucional, não haverá no País uma Justiça rápida, capaz de responder em tempo à tutela reclamada pelos jurisdicionados.

É extremamente preocupante observar que a maioria da população atribui aos juízes a culpa pela demora no julgamento dos processos. Nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro e no Distrito Federal, além dos tribunais de Brasília, o número de processos enfrentados por juiz é tão grande que foge à razão.

Os juízes estaduais de São Paulo, que ganham no início de carreira a metade dos vencimentos de um juiz federal, para o exercício de uma atividade igualmente complexa, porém mais ampla, julgam dez vezes mais processos que os juízes do Norte e Nordeste. E são sempre acusados de não trabalhar o suficiente.

Quem sabe, quando a nossa Constituição federal perder a característica da provisoriedade, esse quadro se altere ou ao menos seja atenuado. O País merece.