Título: Distância do 'ensino a distância'
Autor: Gomes, Álvaro Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

A CNNB diz que Bolsa-Família vicia. O governo diz que não. Eis aí o novo debate sobre ¿tóxicos e dependência¿.

Os dois lados precisam ser corrigidos nas afirmações que fizeram. É que o programa Bolsa-Família não vicia o povo, mas o governo. Que governo deixaria de continuar nessa política suicida diante das pressões em época de eleições? O populismo não vicia quem recebe, vicia quem dá. Lembram-se de Alckmin? No meio da campanha ele começou a jurar de pés juntos que, se eleito, não acabaria com o programa Bolsa-Família.

Esse tipo de política social descabelada gera bolas de neve. Quando optamos por dar as coisas de mão beijada, temos de perceber que quem recebeu pode muito bem não entender para que, de fato, recebeu o que foi dado. E quem deu, com o tempo, esquece para que foi feito o esforço inicial. As conseqüências dessa forma arcaica de fazer política aparecem cedo ou tarde e atingem todos os setores sociais do Estado. Elas já estão encadeadas para surgirem no âmbito da educação. Quando chegarem, terão a cama preparada.

Estamos assistindo à contínua demissão de doutores das faculdades particulares. Isso começou de modo mais acentuado em 2004. Um funcionário da Capes, aliás, um filósofo (!), reclamou e disse que as universidades iriam ser punidas por isso. Tomou um ¿cala-a-boca¿ dos políticos governistas associados a donos de escolas de pouca qualidade e pôs a cauda entre as pernas - para garantir seu empreguinho. Afinal, para que as escolas de ensino superior vão querer gente realmente qualificada? Sim, pois o estudante do ensino fundamental gerado pelos programas do tipo do Bolsa-Família, do modo como este está sendo feito, não será boa coisa - sabemos bem.

Então, é necessário preparar o ensino superior para receber tal estudante. A catástrofe está próxima. Trata-se do ¿boom¿ do malfadado ¿Ensino a Distância¿. Sob a leniência das agências reguladoras do Estado, que fingem fiscalizar e controlar o ensino (que é concessão do Estado!), algumas entidades estão se preparando para vender a outras entidades um ensino extremamente massificado, na forma dos chamados pacotes de Ensino a Distância. O que isso implica? Apenas transmissão de aulas tradicionais pela televisão, por satélite. Tudo no pior estilo do velho Mobral da ditadura militar.

O sistema funciona do seguinte modo: a entidade receptora do programa fecha seus cursos, dispensa todos os professores titulados, mantém alguns poucos e despreparados (apenas graduados) e compra o programa da entidade produtora do Ensino a Distância (uma delas, vinda do Paraná, já parece contar com mais de 100 mil alunos!), que oferece cursos bem baratos (na casa de uns R$ 180). Os lucros são repartidos na proporção de 60% (ou 75%) para a entidade fornecedora do programa e 40% (ou 15%) para a entidade que recebe em suas instalações os alunos incautos. As aulas dos cursos (Pedagogia, Letras, Matemática, Administração, Contábeis, etc.) são dadas uma vez por semana, com os alunos sentadinhos diante de um monitor. Quem controla a parafernália eletrônica e cuida da presença e do comportamento do corpo discente não é um professor, é simplesmente um bedel. Os professores a distância, deitando falação eletrônica, fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem, com a enorme vantagem de pagarem a módica quantia de R$ 180. Num curso regular, com professores titulados e presenciais, pagariam uma média de R$ 400 de mensalidade. Eis o milagre: as empresas vendem seus produtos ao maior número possível de entidades privadas, as faculdadezinhas Brasil afora se livram de professores onerosos (e com muitos encargos trabalhistas) e só se incumbem de atrair alunos. Os alunos, por sua vez, obtêm por um preço bastante módico o diploma universitário. É o programa ¿Fome Zero do Ensino¿ no Brasil: universidade para todos!

Não poderia ser de outra forma, pois as crianças do programa Bolsa-Família logo estarão crescidas. Tais crianças estão apenas sendo usadas pelas famílias para obter a esmola. Não há nenhum programa pedagógico especial para elas. Continuarão sendo desconsideradas enquanto estudantes e, ao final, sua escolaridade não lhes dará nada, em termos de conhecimento, além do que elas já teriam. Todavia, terão um diploma. Legalmente, serão candidatas ao ensino superior. Então, vão precisar se titular no âmbito de um ensino superior facilitado, o único que conseguiriam levar adiante. Assim, tudo se encaixa.

Por outro lado, há também o ¿Ensino a Distância¿ estatal. Outra burrice, para não dizer que se pode tratar de um caminho para operações pouco nobres. Nele há o gasto de muito dinheiro com um aparato eletrônico que, hoje, é totalmente dispensável diante dos sistemas de comunicações gratuitos que a internet regular já oferece. Esse aparato é já no seu nascimento algo obsoleto. Hoje, em nossas casas, podemos montar uma ilha de ensino virtual com custo praticamente zero. E seria altamente aconselhável fazer isso não como substituição da educação presencial que articula ensino e pesquisa, mas como uma forma de potencializá-la.

Mas o errado se faz porque a universidade estatal (que alguns acham que é pública) também precisa integrar-se a esse esforço de dar diploma a todos, independentemente dessa coisa esquisita - para este governo - que é o aprendizado real. Tudo se vai amoldando ao ponto-chave, que é a opção do Brasil de Lula pela volta a um tipo de política social que imaginávamos haver ficado num passado distante. O resultado disso não será apenas um povo mais tolo, em termos gerais, mas uma mão-de-obra incapaz e, então, um mercado com profissionais diplomados, mas não aptos para o serviço a que serão destinados.