Título: Comércio é exemplo da frieza da relação bilateral
Autor: Marin, Denise Chrispim
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2006, Internacional, p. A8
Nos últimos cinco anos, a marca mais expressiva da relação diplomática sem densidade entre Brasil e EUA está no setor do comércio - e, neste caso, a influência dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 é diluída. A neurose do terror ajudou a concentrar as atenções de Washington nas questões relativas à segurança, mas a freada nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) já havia sido dada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, na Cúpula de Quebéc, em abril de 2001. O governo Lula apenas deixou claro que não tem interesse em reabrir esse processo. FHC dissera que a América do Sul não aceitaria "uma Alca qualquer" - em que não houvesse redução de barreiras como contrapartida à redução de tarifas -, e Lula chamou a Alca de "projeto de anexação".
Em 2004, a Alca foi definitivamente engavetada e, no final de 2005, foi declarada morta durante a Cúpula das Américas de Mar del Plata (Argentina). EUA e Brasil (Mercosul) saíram a galope para fechar acordos comerciais na América Latina, mas ambos passaram a se concentrar na negociação de maior interesse, a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Os dilemas bilaterais vão se tornar mais claros a partir de duas decisões que Washington deve tomar nos próximos meses. Primeiro, se o Brasil será eliminado do Sistema de Preferências Comerciais (SGP) americano, que permite reduções de tarifas para um conjunto de produtos de países em desenvolvimento. A medida será anunciada em dezembro. Segundo, se os EUA apresentarão uma nova proposta de corte dos subsídios agrícolas - a iniciativa para retomar a Rodada Doha, suspensa em julho.
O peso maior do comportamento anti-Alca, no caso brasileiro, veio com a mudança de orientação para a diplomacia, desde a posse do presidente Lula. Do início de 2003 ao abandono da Alca, o Itamaraty "exilou" os negociadores mais favoráveis ao acordo e nomeou um co-presidente brasileiro da Alca, o embaixador Adhemar Bahadian, claramente oposto ao projeto. Em seu melhor momento, Bahadian comparou a Alca a uma "odalisca de cabaré barato".
Em agosto de 2003, em uma reunião com Bahadian no Rio de Janeiro, o co-presidente da Alca, o americano Peter Allgeier, foi atingido por uma torta no rosto, atirada por um estudante. O calvário de Allgeier estava só começando. Meses depois, no Itamaraty, foi convidado para uma reunião para tratar da Alca na qual participaram Pinheiro Guimarães e secretários-executivos de vários ministérios. Mas Pinheiro Guimarães decidira matar a conversa logo no início. Comentou, em longuíssima exposição, um livro que tratava do projeto de anexação da América Latina pelo governo norte-americano, no século XIX. Allgeier entendeu o recado.
Nesse meio tempo, os EUA fecharam tratados de livre comércio com os países centro-americanos e caribenhos e com a Colômbia e o Peru. Na prática, isolaram o Mercosul. O bloco sul-americano, em contrapartida, celebrou acordos mais modestos com os países da Comunidade Andina de Nações (CAN) e absorveu a Venezuela como membro pleno. O Mercosul criou ainda um projeto mais ambicioso, que envolve principalmente a integração de infra-estrutura da Comunidade Sul-americana (Casa). Mas, no seu interior, vive o dilema de ver um de seus sócios, o Uruguai, escapar do bloco para firmar um tratado com os EUA.