Título: No mundo pós-11/9, relação Brasil-EUA cai na trivialidade
Autor: Marin, Denise Chrispim
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2006, Internacional, p. A8
Logo após o 11 de Setembro, o Itamaraty teve duas certezas. A primeira, que os EUA passavam a ser, a partir daquele momento, um país em guerra. A segunda certeza: os olhos, já distantes de Washington para a região ao Sul do Rio Grande, em particular para o Brasil, ficariam praticamente cegos. No balanço destes cinco anos, a maioria dos funcionários das relações exteriores que conversou com o Estado e pediu anonimato admite que, salvo os embates sobre os destinos da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e as chateações de Washington sobre a região de Foz do Iguaçu, Brasil e EUA seguiram agendas próprias, com raras conexões. O Itamaraty ficou mais liberto das interferências americanas, mas a relação bilateral não se aprofundou - em alguns momentos, choques diplomáticos triviais beiraram a banalidade e a provocação ideológica simplista.
Na manhã de 11 de setembro de 2001, quando falava à imprensa, na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o então chanceler Celso Lafer foi puxado três vezes pela manga antes de se render ao apelo de um assessor. Imediatamente, o governo brasileiro expressou sua solidariedade a Washington. Mas o Itamaraty deu um passo além, articulando a convocação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), da Organização dos Estados Americanos (OEA). Documento de 1947, o TIAR prevê que a agressão a um país das Américas é uma violência contra todos.
O caráter político-diplomático do gesto brasileiro foi recebido pela Casa Branca com gratidão, mas a aprovação da convocação do TIAR, em janeiro de 2002, foi precedida de uma avalanche de medidas de vigilância extremada em portos e aeroportos internacionais e de um fato que, simbolicamente, marcaria as relações Brasil-EUA: ao desembarcar em Miami, rumo à Assembléia da OEA que discutiria o tema, Lafer teve de ficar descalço e passar os sapatos pelo raio-x do aeroporto. Não foi a única autoridade estrangeira a enfrentar tal constrangimento, mas o caso tornou-se, no Brasil, ferramenta afiada para a oposição. "Não quis entrar na lógica 'você sabe com quem está falando?'", disse Lafer ao Estado.
A irritação americana estava condicionada por algo mais que o rigor da imigração na alfândega. A tensão diplomática entre Washington e Brasília havia se elevado com o discurso do então presidente Fernando Henrique Cardoso na Assembléia Nacional, em Paris, no dia 31 de outubro. Naquela ocasião, contrapondo-se ao discurso do núcleo duro da Casa Branca e do Pentágono sobre o choque de civilizações, FHC alertou que a "barbárie e o autoritarismo, infelizmente, brotaram tanto no Ocidente judaico-cristão como no mundo muçulmano". Disse mais: "Contra o medo e o irracionalismo, façamos prosperar o diálogo e a cooperação, valores que sabemos inscritos em todas as civilizações", receitou.
A alusão de FHC à estratégia dos EUA, de reação unilateralista aos ataques terroristas, foi absorvida com o fígado por Washington e diluiu a impressão favorável causada pela iniciativa brasileira de convocar o TIAR. Menos de um mês depois, FHC encontrou-se com o presidente George W. Bush nos bastidores da cerimônia de abertura da Assembléia Geral da ONU e, sem a veemência usada em Paris, reiterou seu ponto de vista. Bush retribuiria com o célebre princípio do "quem não está comigo, está contra mim".
A estréia de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência coincidiu com a invasão do Iraque. Dois anos depois, as duras e freqüentes críticas públicas de Lula à invasão e ao desprezo de Bush pelos princípios multilateralistas elevaram novamente a temperatura, o que levou, no início de 2004, a então embaixadora dos EUA no Brasil, Donna Hrinak, a agir de forma surpreendente para uma diplomata e a afirmar ao Estado que Lula passara dos limites nos ataques verbais. Mas o fator Hugo Chávez temperou o momento.
Nos últimos quatro anos, com a elevação dos preços internacionais do petróleo, o desinteresse americano pela América do Sul só não alcançou o governo venezuelano. Pela lógica pragmática e apropriada ao momento, Washington passou a ver Lula como representante de um modelo para a esquerda democrática da América Latina. O mérito dos profissionais do Itamaraty foi não deixar que o terceiro-mundismo do PT e de parte da assessoria de Lula no Planalto fechasse a porta do diálogo com os EUA.
Para a cerimônia de posse do presidente brasileiro, em 1º de janeiro de 2003, Bush escalou ninguém menos que o representante de Comércio (USTR), Robert Zoellick, a maior autoridade dos EUA nas negociações da Alca. Na campanha eleitoral brasileira, diante da afirmação dos ideólogos do PT de que a Alca era um projeto de "anexação", Zoellick havia declarado que a resistência brasileira levaria o país a ter de vender seus produtos para a Antártida. Lula disse que negociaria com o "companheiro Bush" e que não trataria do assunto com o "sub do sub do sub" Zoellick - exatamente quem Bush enviou à posse, em Brasília.
No primeiro encontro oficial, em junho de 2003, Lula e Bush promoveram uma reunião ministerial na Casa Branca. Ficou ali estabelecida a marca do relacionamento: muito declaratório, mas pouca efetividade econômica porque Washington continua concentrada no combate ao terror e porque há um desinteresse pelos EUA no Itamaraty do secretário-geral das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães.
Brasília concentrou-se na chamada Cooperação Sul-Sul, ou seja, na aproximação preferencial com as economias em desenvolvimento. Alguns dos eventos marcantes dessa política externa: a reunião de cúpula da América do Sul com os países árabes, em maio de 2005, e a primeira reunião de cúpula do Fórum Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), que acontece no próxima quarta-feira.
O presidente Lula sempre tomou cuidado para preservar o espaço de contato direto e franco com o presidente Bush. Escaldado, deixou que Chávez conduzisse o embate sobre a Alca na Cúpula das Américas, em Mar del Plata, em novembro. Logo em seguida, em Brasília, Lula recebeu Bush na Granja do Torto. No último encontro, na reunião do Grupo dos Oito (G8), em julho, em São Petersburgo, ficou mais clara a preocupação de Bush com as eleições presidenciais no Brasil e na Venezuela. "Você está bem", afirmou Bush, olhando o perfil mais esguio de Lula. "É por causa das eleições", rebateu Lula, acrescentando que a campanha "estava bem encaminhada". Traduzindo: Lula disse a Bush que deve vencer. Para um bom entendedor da Casa Branca, meia palavra basta: sem sobressaltos à vista.