Título: Ruim com ou sem o 'dobradão'
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/12/2006, Espaço Aberto, p. A2
Ao explicar por que nossa economia cresce tão pouco, nós, economistas, usualmente apontamos que sua taxa de investimentos em capital fixo - perto de 20% do PIB - é muito baixa se comparada à dos países que crescem em ritmo acelerado, como a Índia e a China, onde alcança 30% ou mais.
O motor de uma economia são esses investimentos: em obras de infra-estrutura, fábricas, escolas e tudo o mais que produza bens e serviços. Além de gerar produção adicional, levam a encomendas de fornecedores, à contratação de trabalhadores e, assim, a rendimentos que ampliarão a demanda da economia e absorverão a produção adicional.
E para explicar por que tais investimentos são tão baixos no Brasil dizemos que o Estado brasileiro arrecada muito - perto de 40% do PIB, prejudicando os investimentos privados -, toma mais 2% a 3% de empréstimos, desse mesmo PIB, e ainda assim só investe em capital fixo apenas 2% da mesma unidade de referência.
Para saber mesmo por que isso ocorre, contudo, é preciso ir além desse ¿economês¿. Nessa linha, se o problema está num Estado incompetente e muito grande para o PIB que temos - Estado esse que o jornalista Marco Antonio Rocha chama adequadamente de um ¿peru no pires¿, enorme e desequilibrado -, não se pode deixar de culpar a classe política pelo medíocre desempenho econômico pós-1980. Foi ela que tomou ou sancionou as decisões que mais contribuíram para esse quadro, ainda que o Executivo federal costume recorrer ao escapismo de culpar crises externas, quando a maior parte de seus erros são ¿made in Brazil¿. Tomo a classe política também no sentido lato, alcançando o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público (MP), destacando aqui o governo federal, o mais importante no impacto de suas decisões.
Nesse quadro, 2006 é um ano que entrará na História pelos danos efetivos ou potenciais que essa classe trouxe à economia, buscando gastos que sacrificarão investimentos, pressionarão por mais impostos e/ou impedirão a necessária redução de tributos.
Entre outros desastres, o Executivo deu nefasta contribuição ao optar eleitoreiramente por expandir salários do funcionalismo e gastos sociais de forma desequilibrada em relação aos sempre sacrificados investimentos. O Judiciário e o MP demonstraram, diretamente ou por seus maus Conselhos, um apetite invulgar em ampliar vantagens para quem já as tem em pratos dos mais cheios da República.
O Legislativo federal merece destaque especial. Além de sempre disposto a aprovar gastança própria ou alheia, chega ao final do ano completamente desmoralizado por escândalos como os do ¿mensalão¿ e dos ¿sanguessugas¿, enfrentados com sua tradicional cumplicidade corporativa, em que punições são abomináveis, e tudo termina em amplos rodízios de pizza.
No final do ano, numa decisão politicamente covarde, pois tomada sem votação no plenário e apenas por decisão das Mesas Diretoras de suas Casas, resolveu dar-se um aumento de quase 100% dos seus 15 salários, um ¿dobradão¿ salarial. Esse presente seria compartilhado com deputados estaduais e vereadores, com os quais os congressistas fazem suas dobradinhas eleitorais, já que o acintoso aumento repercutiria também sobre as remunerações dos Legislativos estaduais e municipais, numa conta cujo total alcançaria R$ 1,7 bilhão (!) por ano.
Em auspiciosa decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) mandou o Congresso votar esse ou outro aumento. Escrevo sem saber se isso foi feito ontem, mas de qualquer forma a expectativa era de que a decisão menos ruim para os contribuintes seria um reajuste por conta da inflação desde que a remuneração atual entrou em vigor. O pior cenário seria a ratificação do ¿dobradão¿, mas ambas as alternativas seriam muito ruins, pois nossos congressistas não justificam com seu desempenho nem o muito que já ganham e custam aos cofres públicos.
O debate sobre o assunto tem sido ótimo, pois mostrou que a sociedade repele com veemência mais esse ataque ao seu bolso. Com a discussão surgiram também muitas informações importantes, com destaque para a que compara a remuneração dos parlamentares brasileiros, favoravelmente a eles, com ou sem aumento, à de seus pares em países dos mais ricos do mundo.
Na defesa do ¿dobradão¿ se destacaram os presidentes do Senado e da Câmara, Renan Calheiros e Aldo Rebelo. (Que decepção, deputado. Como um membro de um partido que se diz comunista patrocina tamanha iniqüidade?) Eles brandiram argumentos insustentáveis, como o que transforma em seu piso salarial o teto devido aos ministros do STF, numa equivalência que não se sustenta, pela natureza das atribuições e do regime de trabalho dos congressistas, se comparados aos desses ministros. Outro argumento fajuto foi o de que não haveria acréscimo no orçamento do Congresso, pois várias obras seriam cortadas. Ora, não há como compensar um gasto permanente, o ¿dobradão¿, com outro transitório, as obras que seriam realizadas, e ficaria ainda por enfrentar a repercussão nos Legislativos estaduais e municipais.
Por essas e outras razões o ¿dobradão¿ é injustificável, mas com ou sem ele a irresponsabilidade fiscal e a picaretagem em benefício próprio continuarão dominando o Legislativo enquanto vigorar o sistema proporcional de eleição de deputados, pois nele eles guardam enorme distância dos cidadãos a quem deveriam prestar contas de seus atos. Só um sistema distrital poderá corrigir parcela substancial dos defeitos da representação legislativa brasileira. A atual está chegando ao fundo do poço. Retifico: poço lembra água limpa. Certo mesmo é que essa representação se afundou num enorme lamaçal que ela mesma preparou.