Título: Kirchner vai vender gado do Exército
Autor: Palacios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/12/2006, Economia, p. B7
O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, está determinado a não ceder às exigências do setor agropecuário, que no domingo iniciou uma greve programada, em princípio, para durar nove dias. Para minimizar o impacto da paralisação, que conta com elevada adesão, Kirchner não hesitou em enviar milhares de cabeças de gado das Forças Armadas para os mercados.
Kirchner quer evitar o desabastecimento de carne, que, neste país, costuma ter o perigoso duplo efeito de causar maior inflação e elevar a irritação popular com o governo.
Os argentinos são os maiores consumidores per capita de carne bovina do mundo, com 65 quilos anuais. Essa crise tem um simbolismo político especial, já que é a primeira vez que um setor empresarial ousa desafiar o Kirchner.
Além disso, tem um viés econômico crucial, já que o conflito com os pecuaristas desponta como a primeira rachadura na arquitetura do polêmico congelamento de preços do presidente argentino.
A tensão entre produtores e governo é crescente. Os ruralistas, liderados pelos pecuaristas, acusam o governo de ter aplicado, ao longo do último ano, medidas que desviaram de suas mãos para as arcas do Tesouro mais de US$ 1,2 bilhão.
Kirchner retruca que os produtores têm grande cobiça e 'o crescimento econômico precisa ser distribuído entre todos os argentinos'. Também acusa os produtores de fazerem uma greve por razões 'ideológicas'. Segundo o governo, os ruralistas são 'ambiciosos conservadores' que 'querem saquear o bolso dos consumidores'.
O alvo das queixas dos ruralistas são o congelamento de preços (e redução, em alguns casos) e a retenção e limitação de exportações. O resultado imediato da paralisação foi a queda drástica do envio de gado aos mercados, além de verduras, legumes e cereais.
O Mercado de Liniers, o principal da Argentina, estava inusualmente calmo ontem. Em um dia habitual, ali entram em média de 4 mil a 5 mil cabeças. Mas, de manhã, entraram 2 mil cabeças, 95% das quais pertencentes às Forças Armadas. 'As vaquinhas vêm marchando', diziam, com ironia, os funcionários do mercado.
Os analistas sustentam que esse envio de vacas militares não passa de uma mensagem política de que o governo é capaz de qualquer medida para frustrar a mobilização dos produtores. Enquanto isso, as três associações agropecuárias que estão em greve - a quarta se alinha com o governo -, a Federação Agrária, as Confederações Rurais Argentinas e a Sociedade Rural, fizeram ontem tratoraços e bloquearam um trecho da estrada que liga a maior cidade do país, Buenos Aires, ao terceiro centro urbano, Rosario, também o maior porto exportador de cereais da Argentina.
Em cidades como General Villegas, na Província de Buenos Aires, produtores que não aderiram à greve foram impedidos, com violência, por grupos organizados de piqueteiros das associações rurais, de entregar gado aos mercados.
OBSESSÃO
Kirchner tem obsessão por concluir 2006 com uma inflação de um dígito. Ele pretende entrar no ano eleitoral de 2007 com esse trunfo para garantir maior popularidade e disputar a reeleição em outubro - ou, como alternativa, tornar candidata a sua esposa, a senadora Cristina Fernández de Kirchner.
Para isso, desde dezembro de 2005 Kirchner obriga diversos setores a um inédito congelamento de preços. Acordos arrancados dos empresários estipulam que o congelamento deverá durar até dezembro de 2007.
Hoje, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) anunciará o índice de inflação de novembro. Dados preliminares indicam que seria de 0,9%. Dessa forma, a inflação acumulada desde janeiro chegaria a 9%. Diversas estimativas indicam que, em dezembro, chegaria a 1% (levando a inflação do ano a 10%), fato que levaria água abaixo o sonho de Kirchner de um único dígito.