Título: Pé esquerdo pra cá, pé direito pra lá
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

A menos de 25 dias das eleições e sem eventos de magnitude que possam vir a alterar o panorama eleitoral, a vitória do presidente Luiz Inácio já no primeiro turno se torna uma projeção bem razoável. O programa eleitoral de Geraldo Alckmin, até o momento, não afetou a posição do candidato governista. O indicador mais forte para a hipótese que vai ganhando corpo é a tendência de irreversibilidade do voto de Lula nas classes pobres. Impressiona, aliás, a distância que separa os votos dos pobres dos votos da classe média, que chega aos 20 pontos quando se inserem na comparação os eleitores que ganham até R$ 700. Geraldo Alckmin chega a perder de até 4 a 1 na classe E, que ganha até um salário mínimo, e de 3 a 1 na classe D, situada entre um e dois salários mínimos. Como as famílias de classe média somam apenas 15 milhões, ou 31% do total de famílias brasileiras, deduz-se que o meio social é um espaço estreito dentro da oceânica geografia que abriga as margens sociais.

A grande vantagem de Lula, principalmente nas Regiões Nordeste e Norte, obedeceu a uma estratégia engendrada com apuro maquiavélico. Ali se concentra a população mais carente do País, alimentada historicamente com migalhas do assistencialismo e sempre disposta a responder satisfatoriamente aos apelos eleitoreiros, cujo foco é menos voltado para a mente e mais para o estômago. Ampliar o programa Bolsa-Família de 8 milhões para mais de 11 milhões de famílias, em menos de seis meses, foi um tiro no alvo eleitoral, mais certeiro que as bombas de rótulos extravagantes, como mensaleiros e sanguessugas. Afinal de contas, discurso contra a roubalheira não elege mais ninguém, desde os tempos em que Landulfo Caribe fez dele slogan para derrotar o candidato da Arena e se eleger prefeito de Jequié, na Bahia, nos heróicos tempos do velho MDB: "Quem roubou roubou. Quem não roubou não rouba mais." Nem Heloísa Helena, transvestida de Landulfo, consegue animar o povão a vestir o manto da dignidade.

Os partidos políticos, por sua vez, viraram Arenitos e Arenões. Sendo assim, a palavra moralizadora e o discurso do bom mocinho não vingam tanto quanto o recado do toma-lá, dá-cá. "Você gosta de levar vantagem em tudo, certo?" A insinuação do jogador Gerson, que deu nome à lei da vantagem, nunca esteve tão viva no imaginário popular. O cigarro Vila Rica, propagado pelo tricampeão do mundo a 18 cruzeiros o maço, na década de 70, espalha nicotina até hoje, formando círculos de fumaça que contaminam todos os ambientes. Não há como deixar de reconhecer: são poucas as narinas políticas que respiram, hoje, o ar puro das montanhas. Para piorar, as narinas sociais também se entupiram com a fumaça do "rico" tabaco.

Da mesma forma, urge reconhecer que se amplia o fosso entre classes sociais no País. Se os pobres durante o primeiro ciclo Lula elevaram seus padrões de vida, a partir de modesta provisão financeira mensal, as classes médias desceram de patamar. Estudos e pesquisas dão conta da erosão e até proletarização da classe média na última década. Teria perdido ela um terço de sua renda, com mais de 2 milhões de pessoas saindo de sua condição, estimando-se, ainda, que mais de 4 milhões de pessoas tenham abandonado planos privados de saúde. O rebaixamento da classe média, vale lembrar, avançou na esteira do Plano Real, quando os efeitos da estabilização foram agravados pela política cambial e conseqüente desvalorização da moeda. Por conseqüência, ela votou em peso em Lula em 2002. Sente-se, hoje, decepcionada por ter sido mais rebaixada. Os analistas econômicos apontam a estagnação ou retração do PIB como fator responsável pela redução de seu poder de compra. Dos 57 milhões de brasileiros de classe média em 2002, calcula-se que hoje esse número seja de 52 milhões.

Nesse cenário, espraia-se o pensamento de que Lula, se eleito, o será passando por cima da classe média, onde se abrigam os maiores conjuntos de formação de opinião. Portanto, estaria derrubada a tese de que, para ganhar, um candidato à Presidência da República precisa contar com o apoio dos formadores de opinião. Temos outra leitura para o argumento. Nela, o fator tempo é a chave para abrir o entendimento. Se Lula ganhar sem o apoio do sistema de opinião é porque soube bem administrar o tempo. Ele mediu a extensão das marolas criadas pela pedra jogada no meio da lagoa - o clamor de indignação da classe média - e concluiu que seu eco não chegaria forte às margens sociais antes de 1º de outubro. Ou seja, calculou que o programa Bolsa-Família amplificado poderia provocar mais barulho no curto espaço da campanha do que o pacote ético que as oposições ainda tentam arrumar de maneira desajeitada. Calculou bem. Tem a caneta na mão e conhece a "alma do povão".

Neste ponto, vale inferir: seja qual for o presidente, o Brasil entrará em 2007 com o pé direito nas margens e o pé esquerdo no centro. Juntar os dois pés não é tarefa de fácil execução e ainda exige tempo. Aplaudido pelas classes C, D e E, mas não poupado pelas classes médias, nenhum presidente se conseguirá equilibrar. Andará trôpego, até porque as tais marolas, apesar de atrasadas, acabarão chegando às margens, não havendo artificialismo que possa deter os círculos concêntricos das águas. Mais que céu de brigadeiro, o que se vê é penumbra. Além da distância entre classes, veremos também alargada a geopolítica das regiões. Fica patente que as exigências das populações do Nordeste, do Sudeste e do Sul diferem em gênero e grau.

A tônica de que governou para os pobres e a recorrente sentença de que as elites tramam um golpe colam, em definitivo, a imagem de Lula à base da pirâmide social. Até aí, tudo bem. A coisa começa a se complicar quando o eleito não consegue desfazer os nós traçados pela trama eleitoral. Nesse caso, podemos distinguir uma força centrípeta, vinda das margens, em direção a uma força centrífuga, nascida nos centros. O grande desafio do próximo governo é mediar os interesses das duas forças. E tirar a lenha da fogueira.