Título: O encontro de Bush com Shakespeare
Autor: Dowd, Maureen
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/09/2006, Internacional, p. A21

É um desfecho a ser ardentemente desejado. W. (George W. Bush), o mais simplório, estouvado e maniqueísta dos homens, comungando com Will (William Shakespeare), o mais sutil, reflexivo e cosmopolita dos homens.

Sob a tutela de Laura, a Bibliotecária, o presidente está descobrindo o pretinho básico da educação dos anos 1960, como alguns eruditos se referem à lista básica de leituras de verão do presidente, que inclui O Estrangeiro, Hamlet e Macbeth.

A forte aversão de Bush pela elite intelectual tem sido um elemento tão presente na sua persona, de Yale em diante, que é difícil assimilar a idéia de um W. grave, mergulhado em existencialismo francês e tragédia elizabetana.

Na campanha de 2000, W. me contou que não se identificava com nenhum herói literário, que o beisebol era sua "experiência cultural" favorita, e que gostava de "John Le Care, Le Carrier, ou seja lá como se pronuncia esse nome".

Ele foi um rato de ginásio, não de biblioteca. Contou a Brit Hume em 2003 que raramente lia artigos de jornal, preferindo se informar por meio de assessores, e contou a Brian Lamb em 2005 que caía no sono depois de ler 20 ou 30 páginas de algum livro de cabeceira.

Mas a primeira-dama deve ter-se alarmado ao ver o marido ser tripudiado como um cabeça oca envolvido numa bolha. Ela começou a dar entrevistas dizendo que seu homem também lia jornais, e escorregou algum Camus e outros pratos sérios para W.

Jackie Kennedy uma vez se queixou de que os Kennedys conseguiam transformar tudo numa competição, até mesmo pinturas a óleo. W., por sua vez, tentou tornar interessante sua nova lição de casa de erudição envolvendo-se numa competição sobre livros com Karl Rove. Os assessores de Bush contaram a Ken Walsh, da U.S. News & World Report, que o presidente deseja que saibam que ele é um homem de letras.

A afirmação de W. de que já leu entre 53 e 60 livros este ano foi recebida com um certo ceticismo por alguns correligionários - The American Prospect o chama de "ridículo demonstrável" - apesar de um artigo do Wall Street Journal declarar que a leitura dinâmica voltou à moda entre executivos muito ocupados.

Mas eu estou deliciada por W. estar lendo Shakespeare, mesmo que seja só para agradar à esposa ou ganhar uma aposta com seu estrategista. O presidente tem-se mostrado tão surdo ao lidar com o mundo, e mesmo com seu próprio pai, que só pode se beneficiar de um mergulho no oceano de insight do bardo sobre as vicissitudes da natureza humana e da guerra. Para não mencionar os benefícios de se expor à beleza e precisão da linguagem.

Stephen Greenblatt, professor de Harvard e autor de Will in the World: How Shakespeare Became Shakespeare, objeta, observando que "não há razão para se pensar que ler Shakespeare necessariamente nos torne pessoas mais reflexivas e mais profundas. Fosse assim os nazistas, que mantiveram a Sociedade Shakespeare alemã funcionando nos anos 1930 e 1940, teriam aprendido alguma coisa."

Os textos de Shakespeare são tão complexos, diz ele, que "permitem uma gama enorme de leituras e visões políticas, como a Bíblia".

Veja Macbeth, diz Greenblath. Os críticos de Bush poderiam ver uma ironia em W. ler uma peça sobre um líder que toma a decisão catastrófica de derrubar um regime que acaba levando seu país e ele próprio à ruína. Mas o presidente pode estar lendo a peça de maneira totalmente diferente, vendo fumaças de Saddam Hussein em Macbeth, um tirano homicida que recebe sua merecida punição sangrenta.

Mas ele concorda em que há algumas lições importantes que W. poderia colher, incluindo a dúvida de Shakespeare sobre guerras rápidas e fáceis, e sua convicção de que aquilo que o professor chama de "visão pétala de rosa" é uma ilusão; Shakespeare descobriu uma distância imensa entre o que imaginamos e aquilo que possivelmente acontecerá de fato.

Ken Adelman, ex-professor especializado em Shakespeare e diretor de controle de armas sob Ronald Reagan, comparou W. ao Príncipe Hal (personagem da primeira parte da peça Henrique IV, de Shakespeare). Mas o consultor republicano, que ministra um seminário de administração com sua esposa, Carol, sobre Shakespeare, concorda em que o isolamento de W. o impede de ter a força de liderança de Henrique V, que se misturava com a população comum nas tavernas e com os soldados no campo de batalha.

Às vezes, o presidente Bush do segundo mandato parece mais o adversário de Henrique, o Delfim da França, que não tem o menor senso de realidade da batalha ou de suas tropas, não compreende a situação e trata Henrique com imerecido desprezo.

O Bush perpetuamente preto e branco poderia aprender com as nuances de cinza fascinantes do dramaturgo. "Em Shakespeare", diz Marjorie Garber, professora de Harvard e autora de Shakespeare After All, " nada está jamais terminado. Nunca se fecha a porta para nada. Nunca há uma 'Missão Encerrada'."