Título: Fracasso de Doha vai estimular disputas
Autor: Brandão Junior, Nilson
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/09/2006, Economia, p. B4

O fracasso da Rodada Doha fará proliferar o contencioso entre os países no mundo, por falta de um acordo comum. Dados coletados em entidades como o Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone) e a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) mostram potencial de disputas em pelo menos seis áreas agrícolas no sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial de Comércio (OMC), além de ações de defesa comercial, que podem chegar a pelo menos 14 no caso da China.

O efeito colateral do aumento de disputas vem sendo reconhecido por autoridades dos países envolvidos na negociação. Na última vez em que esteve no Brasil, em agosto, a representante dos Estados Unidos para o Comércio (USTR), Susan Schwab, alertou para o problema, citou que disputas entre os países tenderiam a aumenta e indicou que muito do que se avançou na rodada poderia ser perdido caso as negociações não sejam destravadas. O risco, avaliam analistas, seria a OMC tornar-se apenas um foro para solução de conflitos e não para discussão e negociação de normas para o comércio.

No mês passado, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) decidiu que o Brasil recorrerá à OMC para montar um painel com o objetivo de implementar as medidas definidas no órgão ano passado, que determinam que os americanos eliminem subsídios internos aos exportadores de algodão. O prazo para os Estados Unidos implementarem a decisão já terminou e os americanos eliminaram apenas um programa, o Step2.

De forma geral, o Brasil ainda não havia buscado exercer seu direito no caso porque a rodada estava em curso, avalia o presidente do Icone, Marcos Jank. Agora, com o travamento das negociações, o País deve partir para a ofensiva, prossegue o especialista. O instituto assessora o setor agrícola exportador brasileiro nas discussões internacionais.

Segundo o instituto, podem haver contenciosos em potencial, além do algodão, em setores como arroz, soja e milho. Nesses casos, a questão são os subsídios concedidos pelos americanos. No caso do milho, explica o gerente-geral do Icone, André Nassar, o Brasil não é grande exportador do produto e é, relativamente, menos prejudicado que outros países.

No caso da soja e do arroz, os preços internacionais elevados reduzem o impacto dos subsídios. "No momento em que o mercado cai, o ambiente fica favorável para um caso. Aqui no Brasil temos de estar com a estrutura montada para isso", comenta Nassar.

O especialista também lembra que há problemas nos casos de carne bovina e lácteos para a Europa, cujos subsídios sustentam a produção e reduzem o acesso das exportações brasileiras ao mercado. No caso dos subsídios dos Estados Unidos, o cenário é outro: garantem um preço mínimo básico. Com eles os produtores locais exportam mais, elevam a oferta e deprimem os preços globais. Isso prejudica, na prática, a rentabilidade dos exportadores. No caso do arroz, conta Nassar, já houve consulta por parte do setor privado brasileiro e há um trabalho econômico preparado para eventual caso.

No caso da soja, não há um trabalho técnico preparado, mas o problema está mapeado no instituto. Caso os americanos cheguem a reduzir os subsídios ao algodão, poderão destinar o dinheiro para subsidiar outros produtos, como a soja.

"O travamento de Doha vai suscitar mais contenciosos, pelo menos os que estavam latentes", afirma Nassar, citando, contudo, que esses processos levam um tempo. Escritórios de advocacia em Genebra estão atentos, buscando casos no mundo.

O diretor de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp, Roberto Gianetti da Fonseca, explica que o fracasso da rodada vai resultar no "ativismo bilateral e regional, que vai segmentar o mundo em uma teia de acordos e blocos, o que provocará uma série de conflitos de interesses e uma competição acirrada entre países". Levantamento da Fiesp cita ainda disputas potenciais no sistema da OMC para as áreas de café solúvel, de etanol e frango, mais ligadas, contudo, a acesso aos mercados americano e europeu.

Gianetti destaca que o País não deve continuar isolado no mundo e deve buscar os exemplos do Chile e do México, que montaram acordos com vários países. "Vamos também ser mais ativos na questão de contenciosos, ter coragem, com "C" maiúsculo, de enfrentar os poderosos na OMC, com demandas complexas, mas onde temos toda a razão", afirma ele.

De maneira simples, explicam os especialistas, a implementação das medidas do algodão, por exemplo, estavam sendo jogadas pelos americanos para dentro das negociações da Rodada de Doha, que foram travadas.

DEFESA

Além dos contenciosos via o órgão de controvérsias da OMC, crescerão as demandas de defesa comercial em paralelo ao avanço dos acordos bilaterais, indica o vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro. Com as preferências concedidas nos acordo bilaterais, outros países poderão se sentir prejudicados. Isso não cria a necessidade de painel na OMC, mas envolve disputas diplomáticas.

Ainda em agosto, Brasil e China, por exemplo, chegaram a um acordo para limitar as importações de brinquedos chineses até 2010, depois de duras negociações. "A receptividade foi boa, embora os chineses sejam difíceis em todas as negociações", divulgou, na época, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).

Segundo a Fiesp, 14 setores cogitam instrumentos de defesa contra a China, em salvaguardas ou antidumping: acessórios de couro, aparelhos de iluminação, autopeças, cabos de aço, calçados, cerâmica e louça, escovas, máquinas, material hospitalar, obras em vidro, óculos, pedivela de bicicleta, porcas e parafusos e pneus.