Título: 'Rodada Doha está cada vez mais próxima do ideal'
Autor: Marin, Denise Chrispim
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/09/2006, Economia, p. B5
O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, tem mais do que boas perspectivas para a retomada da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Com seu marcante otimismo, o chanceler acredita que os Estados Unidos apresentarão uma proposta para reduzir os subsídios concedidos a seus agricultores para um nível bem menor que US$ 20 bilhões depois das eleições parlamentares de novembro, e que esse movimento levará a União Européia a abandonar a ladainha de que já cedeu o máximo na abertura de seu mercado agrícola.
"Tenho certeza de que, a cada momento que passa, a rodada está mais próxima do resultado ideal", afirmou Amorim ao Estado, na véspera de comandar a primeira reunião de ministros do G-20 e de outros cinco agrupamentos de economias em desenvolvimento da OMC. "Podemos terminá-la em um horizonte previsível."
Amorim não menciona, mas seus assessores indicam que esse horizonte estaria entre o fim de 2007 e o início de 2008. Na manhã de hoje, passados 47 dias da decisão de suspender a Rodada Doha, causada pela completa impossibilidade de acerto no capítulo agrícola, o G-20 e os outros grupos farão o primeiro exercício de reflexão coletivo sobre como sair dessa enrascada com a representante dos Estados Unidos para o Comércio, Susan Schwab, o comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, e o ministro de Agricultura do Japão, Shoichi Nakagawa.
Faltando pouco mais de três meses para o fim do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o chanceler deixou escapar um discreto sinal de que está disposto a continuar no cargo e conduzir a rodada até a conclusão.
Perguntado sobre essa possibilidade, na hipótese da reeleição do presidente, disparou: "Eu estou disposto a trabalhar pelo Brasil. Não tenho nenhuma outra agenda, não sei fazer outras coisas. Teria grande dificuldade de ter um patrão privado. Só se eu fosse meu próprio patrão."
Nesta semana, senadores americanos pressionaram o Executivo a liberar mais US$ 6 bilhões para os agricultores atingidos pela seca. A Corte Européia suspendeu os cortes de subsídios aos produtores de algodão, adotados há dois anos. Esses gestos não mostram a dificuldade de a Rodada Doha ser retomada e avançar?
Esse cenário só reforça a necessidade de concluir a rodada. Percalços ocorrem e ocorrerão no mundo inteiro e em todas as relações. Não podemos ficar impressionados com eles.
A reunião de hoje começa com um resultado conhecido: não será retomada a negociação neste momento. Qual a sua importância?
O objetivo dessa reunião não é negociar, é dialogar. A reunião vem preencher um vazio. Não é desprezível ter ministros de 27 países, incluindo os três parceiros mais ricos do mundo e as três Nações mais populosas, reunidos neste momento para dialogar sobre a rodada. É uma grande vitória. Claro que não basta. Outro dia, eu falei para o Pascal Lamy (diretor-geral da OMC) que era preciso definir se a rodada iria continuar, como e quando. O "se" já está respondido por essa reunião. Todos os países presentes estão engajados. Não vamos sair daqui com propostas novas sobre subsídios internos dos Estados Unidos e sobre acesso ao mercado agrícola da União Européia. Mas, ao conversar, nós testamos limites, vemos as disposições, demarcamos possibilidades.
Que outra situação abstrata como essa gerou um acerto?
O caso dos subsídios à exportação. O melhor documento que foi apresentado na Conferência da OMC em Cancún (2004) não garantia a eliminação desses subsídios. Depois, nós chegamos a um acordo-quadro, com a aceitação do princípio da eliminação. Na Conferência de Hong Kong (2005), fechamos as duas datas - o corte total em 2013, com redução substancial em 2010, que eu espero que seja a metade. Foi um ganho real, que aguarda a conclusão da rodada para ser posto em prática.
Há riscos de recuo nos acertos já fechados, se a Rodada for retomada?
Em relação aos ganhos individuais já acertados, o retrocesso é impossível. Mas, se a Rodada Dolha não for concluída, eles ficarão no ar. Eu reputo que esse risco é pequeno. Sou otimista.
Diante da campanha eleitoral nos Estados Unidos, os negociadores americanos repetem o discurso de que não vão oferecer um corte adicional nos subsídios agrícolas. Como, então, retomar a rodada?
Na medida em que há uma eleição complexa nos Estados Unidos, como a parlamentar de novembro, os interesses específicos tendem a se sobrepor aos interesses estratégicos. Uma vez passadas essas eleições, interesses estratégicos voltam para o primeiro plano. A posição do Brasil é clara: sem uma redução substancial dos subsídios internos pelos Estados Unidos, a rodada não fecha. A chave está aí.
Como obter um avanço real da União Européia em acesso a mercados, se Bruxelas não detalha como quer tratar os produtos sensíveis?
Essa caixa preta terá de ser desvendada. Neste momento, a modéstia do corte nos subsídios agrícolas proposto pelos Estados Unidos libera os europeus de oferecer uma abertura adicional de seu mercado agrícola. Eles vão continuar a dizer que já fizeram tudo o que podiam. Mas vão se mexer na hora em que os Estados Unidos apresentarem essa nova oferta. Estou certo de que os americanos vão fazer esse gesto. Para nós, o ideal é que haja grandes cortes e disciplinas muito estritas para os subsídios. Mas isso é uma negociação.
O sr. se diz otimista, mas como antever um acordo final com a negociação suspensa e com tantos imbróglios a serem resolvidos?
Em Cancún, não havia horizontes. Agora, eles são visíveis. Seria absurdo decretar o fracasso da rodada quando seu resultado é visível.
As diferenças entre Brasil e Índia sobre outras exceções à abertura de mercados - os produtos especiais e as salvaguardas agrícolas - poderia levar esse parceiro do G-20 a se aliar à União Européia nesse tópico?
Essa reunião nasceu de um telefonema meu ao ministro Kamal Nath (Comércio da Índia). Se ele não estivesse interessado, ia deixar pra lá. A questão dos produtos sensíveis tem de ser vista com cuidado. Na rodada, todos os produtos agrícolas estarão sujeitos a cortes de tarifas de importação, mas os sensíveis terão uma redução menor. Temos de saber qual será esse desnível de corte e qual será a fórmula de cálculo da sua cota de importação. Mas não podemos comparar a oferta de acesso a mercados da União Européia com a da Índia. Seria o mesmo que comparar se o fazendeiro europeu terá uma segunda ou uma terceira casa de campo e se agricultor indiano vai continuar com sua produção para sobreviver. A Índia terá de fazer algum gesto nessa área para compor o conjunto. Mas temos de nos lembrar que a Rodada Doha não vai terminar com todas as rodadas futuras. Há 15 anos, os indianos não queriam tocar em serviços nas rodadas. Hoje são exportadores de software e de serviços de informática.
Brasil, Estados Unidos e União Européia concordam que há uma janela de oportunidades para retomar a rodada entre fevereiro e abril de 2007. Essa janela depende da composição do novo Congresso americano?
Tem a ver com isso. Mas a rodada é importante demais para que o Congresso americano coloque os interesses setoriais acima do interesse estratégico dos Estados Unidos. A rodada é importante até para a relação entre americanos e europeus. Imagine o que seriam as brigas comerciais sem a OMC: cada um faria retaliações unilaterais, não haveria nenhum organismo para absorver esses conflitos. A rodada é um legado que a administração George W. Bush poderá deixar.
Mas não será um legado do atual mandato do presidente Lula. Isso é um peso para sua política externa?
Alguma vez o Brasil teve peso em outra rodada multilateral como esta? Alguma vez o Brasil conseguiu criar um equilíbrio na negociação, como o fez com a criação do G-20? Eu gostaria de ter concluído a rodada. Temos de ter consciência de nossa capacidade de atuar e exercê-la. Temos também de ter a humildade de ver que outros fatores pesam. Fiquei triste com a suspensão da rodada. Mas não posso ir para casa, mortificado, e ficar debaixo dos cobertores chorando. Dias depois da suspensão, conversei aqui no Rio com a Susan Schwab, falei por telefone com o Mandelson, com o Kamal. O presidente Lula teve papel importante, incentivando outros líderes a se envolverem. Tenho certeza de que, a cada momento que passa, a rodada está mais próxima do seu resultado ideal. Podemos terminá-la em um horizonte previsível.
Na hipótese de o presidente Lula vencer a eleição de outubro, o sr. estaria disposto a continuar no Itamaraty e à frente da rodada?
Você tem de perguntar ao presidente Lula. Eu estou disposto a trabalhar pelo Brasil. Não tenho nenhuma outra agenda, não sei fazer outras coisas. Teria grande dificuldade de ter um patrão privado. Só se eu fosse o meu próprio patrão.