Título: O STF e a política monetária
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2006, Notas e Informações, p. A3

Ao julgar um recurso impetrado pelos bancos com o objetivo de definir o alcance do Código de Defesa do Consumidor (CDC) sobre as atividades do sistema financeiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os juízes de primeira instância têm competência para alterar a taxa de juros aplicada nos contratos de empréstimo e financiamento levados ao seu julgamento. A decisão é polêmica, pois, como existem cerca de 10 mil juízes atuando nas instâncias inferiores da Justiça Estadual e da Justiça Federal, eles poderão acabar afrontando o Conselho Monetário Nacional, a principal autoridade monetária do País, e o Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), o órgão responsável pela definição da taxa básica de juros (Selic).

A discussão judicial sobre o alcance da aplicação do CDC nas relações entre bancos e clientes chegou ao Supremo há quatro anos, por meio de um recurso da Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif). Na época, o órgão alegou que as instituições financeiras, por prestarem um serviço específico, deveriam ser disciplinadas por uma lei especial para o setor e não por normas gerais, como as da legislação de defesa do consumidor.

O primeiro julgamento ocorreu no dia 7 de junho, quando, por 9 votos contra 2, a corte rejeitou a tese dos bancos. Na ocasião, o Supremo decidiu que o CDC se aplica às atividades do sistema financeiro, ressalvando, contudo, que os litígios sobre a taxa de juros dos contratos bancários deveriam ser julgados pelas instâncias inferiores da magistratura apenas com base nas regras do Código Civil. O Código Civil parte da premissa de que as duas partes são iguais nos processos judiciais, enquanto o CDC favorece os consumidores, considerando-os a parte mais fraca na relação econômica.

Como a ementa do acórdão do STF não ficou clara e essa diferença de tratamento abre caminho para sentenças judiciais discrepantes entre si, a Consif entrou com recurso pedindo à corte que deixasse claros os casos em que os magistrados das instâncias inferiores podem usar o CDC e os casos em que têm de aplicar as regras do Código Civil. Para a entidade, na medida em que o CDC permite aos juízes beneficiar os devedores em detrimento dos credores, ele ¿desequilibra¿ os contratos de empréstimo e financiamento, disseminando incerteza no sistema financeiro e levando os bancos a fechar determinadas linhas de crédito e a aumentar os spreads. A tese é endossada pelo Banco Central, que chegou a publicar uma ¿nota técnica¿ alertando o Poder Judiciário para os problemas econômicos gerados por sentenças que, ao favorecer o que os juízes julgam ser a parte mais fraca nos litígios entre bancos e correntistas, eximem os devedores da obrigação de cumprir parte de suas responsabilidades contratuais.

No julgamento do recurso da Consif, na última quinta-feira, o relator, ministro Eros Grau, levou essa advertência em conta, mas acabou sendo derrotado. A sessão foi longa, os debates foram acirrados e o Supremo, em vez de se limitar a fazer o esclarecimento solicitado pelas instituições financeiras, surpreendentemente reabriu a discussão no mérito, alterando a decisão que havia tomado no dia 7 de junho e liberando a utilização do CDC nos processos que contestam as taxas de juros dos contratos de empréstimo e financiamento com pessoas físicas e empresas.

Com isso, sob a alegação de que o Judiciário pode rever caso a caso as ¿taxas abusivas¿ cobradas pelos bancos, o Supremo acabou dando um poder fantástico aos 10 mil juízes da Justiça Estadual e da Justiça Federal, permitindo-lhes interferir na política macroeconômica do País. ¿Antes, tinha ficado claro que quem fixa a taxa de juros é o Conselho Monetário Nacional. Agora não está claro se a política monetária é definida por esse órgão ou pelo varejo¿ (as instâncias inferiores da magistratura), afirmou Grau, ao término da sessão.

As entidades de defesa do consumidor comemoraram a decisão do STF, enquanto as autoridades monetárias optaram por esperar pela publicação da ementa do acórdão, antes de se pronunciarem. A decisão é sensata, pois, como o próprio relator Eros Grau já afirmou, os ministros do Supremo, que tanto divergiram entre si na discussão da matéria, tentarão redigir uma ementa que seja aprovada por consenso, que não dê margem a interpretações dúbias e deixe claro para os juízes de primeira instância os limites da aplicação do CDC em cada ação sob sua responsabilidade.