Título: Trabalho escravo avança em São Paulo
Autor: Arruda, Roldão
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2006, Nacional, p. A14

São 9 horas da noite e uma chuva fina cai sobre São Paulo. Na boca da zona leste, ponta do bairro do Brás, as ruas estão desertas. Nada lembra a balbúrdia do comércio de alho, cebola, cereais, frutas secas e madeiras que durante o dia inflama esse pedaço da cidade. Tudo agora parece dormir. Parece. Porque em algumas ruas quem levantar os olhos verá quadrados de luz fluorescente nas janelas dos edifícios e, com um pouco de atenção, ouvirá um discreto chiado - o chiado de máquinas industriais de costura.

Elas estão funcionando a todo vapor em oficinas clandestinas de costura, instaladas em antigos edifícios de apartamentos e cortiços da região. Da rua, o olhar não alcança o interior dessas oficinas. Mas do terraço de um prédio vizinho é possível ver pessoas jovens, homens e mulheres, quase sempre de pele morena e cabelo negro e liso, debruçadas sobre as máquinas.

Dos zeladores de edifícios aos balconistas do bar da esquina, todo mundo por ali já sabe: são as oficinas dos bolivianos ilegais. Elas começaram a se espalhar pelo Brás há cerca de uma década e se estenderam pelos bairros vizinhos, Pari, Canindé, Bom Retiro e Mooca. Mais tarde avançaram até o Itaim Paulista, nos confins da zona leste, e cruzaram o Tietê, rumo a Vila Maria, Limão e à Casa Verde. Hoje, num processo que parece não ter fim, chegam silenciosamente a cidades vizinhas, como Osasco, Jandira, Itapevi.

A febre é tanta que na Rua do Lucas, a 300 metros do Parque D. Pedro, num decadente edifício de 12 unidades residenciais, 10 estão ocupadas por essas oficinas. No quarteirão seguinte, um edifício maior, de linhas clássicas, segue a mesma trilha: das 40 unidades, 27 são oficinas. A estátua de São Vito, posta no saguão do prédio para abençoar os italianos que dominavam o bairro nos anos 50, hoje parece abraçar os bolivianos.

Ninguém sabe quantos trabalham nessas oficinas. Uma das poucas instituições que arrisca uma estimativa é o Centro de Apoio ao Migrante, espécie de posto avançado que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) fincou no Pari para acudir latinos que saem de seus países em busca de melhores condições de vida.

Cruzando dados da Polícia Federal, do consulado boliviano e de seu balcão de atendimento, o diretor do centro, Paulo Illes, calcula que só no Brás e arredores o número de bolivianos ilegais - ou indocumentados, como ele prefere - passa de 35 mil. Em São Paulo somariam 70 mil.

Tais números já seriam suficientes para fazer soar sinais de alerta no gabinete de qualquer autoridade. Mas o problema maior ainda está atrás dele, na rotina das oficinas.

O que acontece ali é como um soco na confortável crença, cultivada por muitos brasileiros, de que o lado atrasado do País mora longe, na zona rural, ou lá na Amazônia. Essa crença tem sido estimulada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que alardeia no exterior as ações da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho para libertar trabalhadores escravizados por fazendeiros, mas não mostra o mesmo empenho nas grandes cidades.

As jornadas de trabalho duram até 18 horas nas oficinas de costura da Rua do Lucas, que dista cerca de 12 quilômetros da sede da Polícia Federal, na Lapa, e menos de 5 da sede da Delegacia Regional do Trabalho, no centro. As máquinas operam das 6 da manhã às 10 da noite. Muitas vão até a meia-noite, por insistência dos bolivianos - que trabalham até não parar mais em pé, pois ganham pelo que produzem.

Quando param, jogam um colchonete sob a máquina e dormem ali; ou então se espremem em beliches de pequenos quartos, áreas de serviço, banheiros. Só saem dali aos sábados à tarde e aos domingos.

Pedro, rapaz franzino, de olhos negros e desconfiados, conta que dorme num banheiro estreito assim, como indica, abrindo um vão entre os braços. A janela foi fechada com tijolo e cimento porque abria para a rua e podia despertar atenção da polícia. Ele diz que já não se importa com o cheiro de mofo, a umidade e a escuridão, mas ainda sente nojo das baratas que saem de buracos no teto e do ralo no chão.

O rapaz desembarcou em São Paulo há seis meses, dias antes de inteirar 18 anos, atraído por um primo, dono de uma oficina de costura no Canindé. 'Ele disse que eu ganharia muito, mas só me paga R$ 100 por mês. Fala que precisa descontar a comida e a moradia e que ainda devo parte do dinheiro da passagem de La Paz até aqui.'

Ele suspeita que contraiu alguma doença: 'Acordo duas ou três vezes por noite empapado de suor. Visto uma camiseta seca e dali a pouco acordo molhado outra vez. É normal?'

Ele pode não estar doente, mas o relato lembra um temor que ganha corpo entre organizações que atendem a migrantes: os casos de tuberculose estariam aumentando entre eles.

FUGA

Enrico, outro boliviano que deixou La Paz atraído por promessas de bons salários, diz que, após passar três meses trancafiado na oficina de um tio, fugiu: 'Ele segurou os meus documentos e ameaçou me denunciar à polícia, mas arrisquei.'

Costureiro hábil, Enrico já passou por várias oficinas, procurando melhores salários. Agora trabalha diretamente para proprietários de lojas, em oficinas ocultas nas sobrelojas das ruas comerciais do Brás: 'Ganho mais porque nesses casos tem menos intermediários.'

Com jornadas de 16 horas, o costureiro de 24 anos chega a ganhar R$ 1.200 por mês. Remete parte para a família na Bolívia e detesta ser comparado a um escravo: 'Ninguém me obriga a trabalhar. Trabalho muito porque quero.'

Enrico cultiva, com abundância de gel, um pequeno topete e torce para o Corinthians - o maioral entre os imigrantes. Sorri orgulhoso, exibindo dentes cariados, quando é lembrado de que faz parte de uma reduzida elite de bem-sucedidos. Na média, os mais experientes ganham R$ 450; os recém-chegados patinam com R$ 50.

Pedro e Enrico são nomes fictícios. Bolivianos não gostam de jornalistas, pois temem atrair a atenção das autoridades. Sem visto de permanência no País, podem ser expulsos - coisa que não desejam, pois, por pior que seja a vida por aqui, acham que têm mais oportunidades que na Bolívia.

Também temem os donos das oficinas, bolivianos como eles. No Centro de Apoio, a queixa mais comum é contra patrões que atrasam salários e põem o empregado na rua sem pagar o que devem.

Nas oficinas, as jornadas de trabalho são interrompidas três vezes ao dia, para as refeições, servidas sobre a máquina. Sandra, costureira que sonha juntar R$ 370 para comprar sua passagem de volta à Bolívia, conta que servem pão e café no 'desayuno', arroz com ovo no almoço e arroz com ovo na janta. Às vezes o cardápio varia: macarrão com salsicha e, de sobremesa, banana nanica.

O jornalista José Gamboa, diretor de um mensário editado em espanhol e voltado para a comunidade boliviana, teve melhor sorte quando trabalhou disfarçado para uma reportagem: 'Às vezes serviam carne moída com batata. Muita batata.'

O pior, segundo Sandra é a situação das crianças. Relata que quando começam a engatinhar são presas à máquina de costura por uma cordinha.

No Centro de Apoio, uma senhora que viveu oito meses trancafiada numa oficina e foi posta na rua com três filhos, após brigar e apanhar do marido e do dono da oficina, diz: 'As crianças ficavam trancadas no quarto ou então amarradas, para não pôr as mãos nas máquinas nem atrapalhar o serviço.'

Na Casa do Migrante, na Baixada do Glicério, a assistente social Maria Araújo, lembra que a pior coisa que presenciou por lá foi a acolhida de uma criança saída dessas oficinas: 'Franzina, assustada, ela tinha dois anos e ainda não andava.'

A situação não deve melhorar a curto prazo. É a opinião de Juan Villegas Luazo, boliviano que há 20 anos vive no Brasil. Dono de uma oficina e diretor de uma associação que tenta organizar os bolivianos, ele afirma que a pressão dos grandes compradores por menores preços não pára: 'Falam que está mais barato comprar da China. Há dez anos o preço da mão-de-obra representava 10% peça de roupa. Hoje, no melhor dos casos, chega a 4%. Quando se paga R$ 2 ao costureiro, a peça vai para a vitrine por R$ 40.'

O exemplo é otimista. Raramente se paga R$ 2 por uma peça. O preço mais alto ouvido nas rodas de bolivianos é de R$ 1,20 por uma bermuda sofisticada, que exige quase duas horas de costura. O mais baixo, R$ 0,10, por camisetas vendidas a R$ 16.

No Brasil fala-se bastante de produtos rurais, como a carne, obtidos com mão-de-obra escrava. Mas alguém já protestou contra as roupas e bolsas que saem dessas oficinas?