Título: EUA podem sair, mas voltarão
Autor: Rothkopf, David
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2006, Internacional, p. A25

Deslocamento estratégico. Redução gradual. Estratégia de saída. Seja qual for a expressão, o fato é que Washington parece virar uma página na história do Iraque. As eleições parlamentares nos EUA, a subseqüente renúncia do secretário da Defesa Donald Rumsfeld e a divulgação do relatório do Grupo de Estudos para o Iraque, no início do mês, sugerem que os objetivos de transformação que levaram as forças americanas ao território iraquiano são substituídos por um desejo inequívoco e bipartidário de trazer as tropas para casa, acabar com essa confusão e seguir em frente.

Este impulso, embora compreensível, reflete o narcisismo nacional que afeta grande parte da política externa dos EUA. Achamos que o Iraque nos diz respeito. Fizemos isso acontecer e podemos desfazer. Mas soluções unilaterais para pôr fim à guerra no Iraque são tão irreais quanto os impulsos unilaterais que a provocaram. Mesmo quando tentamos refazer a História, é ela que nos refaz.

As forças econômicas e políticas que arrastaram os Estados Unidos para o Iraque - bem diferentes dos motivos apresentados pelo governo Bush para a invasão - continuam poderosas, exercendo uma influência à qual será difícil resistir. O petróleo, obviamente, é a principal. Mas também são importantes as ameaças e tensões ligadas ao petróleo: a rivalidade de décadas entre Washington e Teerã, os crescentes perigos representados pela proliferação de armas de destruição em massa e o temor de que os conflitos em banho-maria no Oriente Médio irrompam numa guerra mais ampla, mais sangrenta e muito mais custosa.

Para seu crédito, o Grupo de Estudos para o Iraque reconheceu várias dessas dimensões. No entanto, por mais que tentemos nos desvencilhar do Iraque hoje, o melhor que podemos esperar é apenas o fim deste capítulo do envolvimento militar dos EUA na região. Não existe saída do Oriente Médio. Mesmo se sairmos agora, voltaremos.

Nos livros de História do futuro, esta guerra poderá ser conhecida como a 2ª Guerra do Golfo. Ou talvez o período seja lembrado como a era das Guerras do Golfo. Do mesmo modo que hoje olhamos para conflitos prolongados e episódicos como a Guerra dos Trinta Anos ou a Guerra dos Cem Anos, os historiadores poderão ver o choque atual como mais uma batalha numa guerra muito mais longa. As ações dos EUA nesta guerra do Golfo aumentaram dramaticamente a probabilidade de conflitos futuros. Inflamamos as tensões no Oriente Médio, minamos nossa influência regional e corroemos a vontade política de nossa nação de permanecer ativamente engajada nesta parte crítica do mundo.

As forças que nos atraem de volta são tão poderosas que não importa qual partido controla o Congresso ou ocupa a Casa Branca. Na verdade, considerando as mudanças políticas desencadeadas por este conflito cada vez mais impopular, parece bem possível que um presidente democrata sinta-se compelido a lançar a 3ª Guerra do Golfo.

Os interesses dos EUA no Oriente Médio datam dos anos posteriores à 1ª Guerra Mundial, quando os britânicos redesenharam o mapa da região e criaram Estados-nação como o Iraque, uma colagem de peças sunitas, xiitas e curdas desiguais. Como potência industrial em ascensão, os EUA não puderam ignorar a promessa de petróleo identificada no Golfo Pérsico nos anos 20. Com os contratos de exploração concedidos à Standard Oil da Califórnia e à Texaco em 1933 e 1936, respectivamente, os EUA se comprometeram na prática com um envolvimento - e uma dependência - sempre crescentes na região.

Mas foi depois da 2ª Guerra Mundial, quando os EUA, famintos por energia, assumiram a tarefa de forjar uma nova ordem mundial, que o Oriente Médio tornou-se uma prioridade central da política externa americana. Não só a demanda por petróleo crescia precipitadamente, como também Washington entrava na Guerra Fria contra um adversário soviético que também cobiçava os recursos energéticos do Oriente Médio. Imediatamente depois da guerra, os russos se recusaram a deixar o Irã, descumprindo a promessa feita na Conferência de Yalta, em 1945; foi necessária a ação do Conselho de Segurança da ONU para forçar sua retirada. Isto acabou levando os EUA a procurar em Teerã um aliado confiável, o que por sua vez levou os presidentes americanos, de Dwight Eisenhower a Jimmy Carter, a apoiar o xá.

ISRAEL

Ao mesmo tempo, a situação na região foi incomensuravelmente complicada pela criação do Estado de Israel, em 1948, e o apoio do presidente Harry Truman à nova entidade. Este novo laço americano-israelense criou uma tensão instantânea com os países dos quais os EUA dependiam para obter petróleo, definindo assim um malabarismo que até hoje é o mais difícil da política externa de Washington.

Ao longo do tempo, este quadro ficou ainda mais complexo, como resultado tanto das vitórias quanto das trapalhadas e derrotas dos EUA. Os abusos do regime do xá levaram à rebelião popular no Irã e à ascensão da teocracia do aiatolá Khomeini - uma derrota geopolítica agravada pela humilhante crise dos reféns. E depois que os soviéticos invadiram o Afeganistão, em 1979, os EUA responderam em duas frentes: tentaram repelir as forças da URSS no país apoiando a resistência dos mujahedin, liderada por gente como Osama bin Laden, e procuraram contrabalançar a influência do Irã apoiando a reivindicação de liderança do homem forte militar iraquiano Saddam Hussein. Em ambos os casos, os resultados se mostrariam perturbadores.

A queda do inimigo soviético eliminou o que havia de coerência e princípio organizador nos interesses dos EUA no Oriente Médio, algo que parecia estar acima dos meros interesses petrolíferos. Mas então aquele ex-aliado dos EUA, Saddam, aparentemente calculando que Washington precisava mais dele do que ele de Washington, invadiu o Kuwait em 1990, ameaçando os aliados dos americanos na região do Golfo. Com a cooperação saudita, o governo do presidente George H. W. Bush e seus aliados fizeram Saddam recuar. Mas Bush pai resistiu à idéia de invadir Bagdá para derrubá-lo, talvez temendo um novo vácuo de poder no Oriente Médio que pudesse ser preenchido pelo Irã, que substituíra a União Soviética como o principal rival regional dos EUA. Como me disse um destacado cientista político árabe, ¿o segredo que a maioria dos americanos não admite é que esta guerra mais recente não tem a ver com terrorismo. É parte de uma disputa geopolítica de 25 anos com o Irã pela hegemonia regional¿.

Hoje, como observou o rei Abdala, da Jordânia, a região está à beira de três guerras civis - no Iraque, no Líbano e nos territórios palestinos -, todas envolvendo de algum modo o Irã, os EUA ou seus representantes. Enredados na 2ª Guerra do Golfo, os EUA enfrentam uma lista crescente de ameaças adicionais: a aquisição de tecnologia de armas nucleares pelo Irã; o ressurgimento do Taleban no Afeganistão; o crescente radicalismo antiamericano no mundo muçulmano e a ameaça que essas paixões representam para os líderes moderados à frente de regimes potencialmente frágeis no Egito, Jordânia, Paquistão e Arábia Saudita; e o crescente distanciamento entre Washington e aliados que normalmente compartilhariam dos interesses americanos. Infelizmente, a invasão do Iraque nesta guerra mais recente no Golfo só exacerbou essas situações.

AMEAÇA IRANIANA

Que cenários plausíveis poderiam arrastar os EUA - mesmo cansados de fazer guerra - de volta ao Oriente Médio, para uma 3ª Guerra do Golfo?

Claramente, o confronto com o Irã - em torno de suas políticas regionais, seu apoio a terroristas e seu desejo de obter armas nucleares - encabeça a lista. Basta lembrar o debate sobre o Iraque anterior à invasão para entender que a comunidade internacional considera a proliferação de armas de destruição em massa uma justificativa aceitável para a guerra. A ameaça iraniana se destaca porque pode desencadear uma corrida armamentista por uma ¿bomba sunita¿ para contrabalançar a ¿bomba xiita¿. Por outro lado, Israel dificilmente vai tolerar por muito tempo uma capacidade nuclear de um governo que pede sua destruição - e qualquer ação israelense seria vista no mundo árabe como uma ação em nome dos EUA.

Como recomendou o Grupo de Estudos para o Iraque, este governo ou um governo futuro deveriam procurar estabilizar o Iraque aproximando-se de atores regionais como Irã e Síria - duas nações tradicionalmente hostis a Israel. Ao fazê-lo, Washington também poderia pressionar por uma devolução acelerada das Colinas do Golan ou pelo estabelecimento acelerado de um Estado palestino sustentável, como sugere o relatório do grupo.

Embora estas iniciativas diplomáticas possam se mostrar sensatas, elas também poderiam ser interpretadas como um enfraquecimento do apoio americano a Israel. Isto poderia encorajar elementos mais radicais, como as facções militares do Hamas ou do Hezbollah, a pressionar Israel com mais força a fim de obter mais concessões ou testar a viabilidade de um governo israelense operando com um aliado americano menos solícito. Em todos estes cenários, Washington precisa evitar a aparência de fraqueza ou a percepção de hesitação em relação a seus compromissos essenciais na região; qualquer concessão dos EUA ou de seus aliados precisa sempre ser vista como oriunda de posições de força.

Outros eventos no Oriente Médio poderiam motivar uma resposta militar, ainda que relutante, dos EUA. E se a Jordânia, ou Paquistão ou a Arábia Saudita, caísse em mãos fundamentalistas? A percepção da ameaça, o impacto sobre os preços mundiais da energia, a reação dos rivais regionais - estes elementos poderiam rapidamente pôr as forças americanas em alerta, especialmente se tropas, cidadãos ou bases dos Estados Unidos na região fossem ameaçados. E se tropas iranianas entrassem no Iraque? E se outro ataque terrorista contra o território americano (ou contra interesses dos EUA em qualquer lugar do mundo) pudesse ser atribuído a forças na região?

A resposta provavelmente não seria uma tática rumsfeldiana de ¿choque e pavor¿. Em vez disso, considerando o alcance e a interconexão dessas ameaças e o desejo de evitar os erros cometidos agora, uma 3ª Guerra do Golfo provavelmente seria maior, em termos de envolvimento de tropas, que a 2ª.

Agora que a 2ª Guerra do Golfo entra numa nova fase, a Guerra do Vietnã oferece uma lição importante, assim como uma distinção importante. A lição é que sair de um país é freqüentemente muito mais complicado que entrar. Depois que a eleição americana de 1968 confirmou o desejo do público de se retirar do Vietnã, a guerra se arrastou por vários anos e provocou tantas mortes quanto no período de escalada. Mas a distinção é que até mesmo a retirada do Vietnã provavelmente se mostrará muito mais simples que a saída do Iraque ou da região.

O Oriente Médio é hoje infinitamente mais perigoso que no início da 2ª Guerra do Golfo. Agora, o governo Bush precisa fazer o que não fez antes de invadir o Iraque: planejar-se para os futuros prováveis e possíveis, e não apenas para o futuro que espera encontrar. Embora uma presença militar americana a longo prazo possa inflamar ainda mais as paixões antiamericanas, ela também pode ter um sentido estratégico adequado e prudente. O povo americano precisará avaliar as opções com base nos interesses mais amplos do país - que incluem a redução da probabilidade de mais uma guerra na região -, e não apoiar a opção de curto prazo, comodista, de trazer as tropas para casa e recolher-se num estado de semi-isolacionismo.

Só os iraquianos podem resolver seus problemas políticos e a violência sectária. Os EUA podem ajudar oferecendo recursos aos soldados e policiais iraquianos - não armas que poderão um dia ser usadas contra as forças americanas, e sim blindagem corporal, veículos de transporte, ferramentas de controle de multidões, tecnologia de informação, treinamento e os demais elementos capazes de ajudá-los a assumir mais responsabilidade pela própria segurança nos próximos meses. Os EUA também precisam restaurar suas próprias forças militares, agora exauridas, e determinar de que modo uma guerra como a do Iraque pôde esgotá-las dessa maneira.

POLÍTICA DE CONTENÇÃO

No longo prazo, uma abordagem razoável para a região poderia ser chamada de ¿contenção paralela¿: os EUA devem conter as complexas ameaças que enfrentam no Oriente Médio e, ao mesmo tempo, tentar limitar seus interesses vitais na área.

No primeiro caso, o Hezbollah e o Hamas precisam saber que os EUA estão presentes e prontos para agir. O Irã precisa saber que não poderá desenvolver armas nucleares e ponto final. Os moderados na região precisam saber que estaremos a seu lado, com auxílio econômico e apoio político, ajudando a restaurar a autoridade moral dos EUA no Oriente Médio. E todos precisam saber que um ataque a Israel sempre será considerado um ataque aos EUA.

No segundo caso, precisamos embarcar na tarefa de longo prazo, mas fundamental, de reduzir nossa dependência energética em relação ao Oriente Médio. Nenhuma estratégia em nenhuma guerra do Golfo poderia produzir uma mudança mais duradoura na região do que uma queda prolongada dos preços do petróleo. A única fórmula segura para a vitória definitiva nas guerras do Golfo virá com a inovação e a preservação aqui mesmo, em casa.