Título: Conflito na Somália ameaça região
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2006, Internacional, p. A27

O conflito na Somália aumentou de proporção nas últimas semanas, ameaçando mergulhar toda a região conhecida como Chifre da África no palco de mais uma guerra sangrenta que, de tempos em tempos, castiga o continente. Já há até data para o estopim - amanhã, quando vence o prazo dado pela União das Cortes Islâmicas, a milícia muçulmana que controla a capital Mogadiscio e a maior parte do país, para que as tropas da vizinha Etiópia voltem para casa. Elas foram enviadas pelo governo etíope para dar proteção ao governo provisório somali. Embora reconhecido até pela ONU, a autoridade provisória é impopular entre a população e não tem poder político ou militar, pois controla uma única cidade - Baidoa.

A esperança de evitar o pior caiu por terra na sexta-feira, quando o presidente do governo provisório, Abdullahi Yusuf, disse estar desiludido quanto às chances de paz e acusou a milícia de ligações com a Al-Qaeda. Num país relegado ao caos e sem um governo formal há quinze anos, o recado de Yusuf equivale a uma declaração de guerra.

Yusuf conta com a ajuda da Etiópia, uma potência militar regional de maioria cristã que parece determinada a impedir a criação de um Estado islâmico no país vizinho. A milícia muçulmana acusa a Etiópia de ter enviado 30 mil homens para proteger o enfraquecido governo provisório em Baidoa. Fontes diplomáticas falam em 8 mil homens, mas a Etiópia assegura ter mandado apenas algumas centenas de consultores.

O que se espera é um conflito que vai muito além dos dois países. Um relatório secreto da ONU vazado em novembro acusa Irã, Síria, Líbia, Arábia Saudita, Egito e o grupo Hezbollah, do Líbano, de fornecer armas, treinamento e financiamento para a milícia muçulmana. Nos últimos meses, já ocorreram dois atentados suicidas - uma tática até então inexistente na Somália. Além da ajuda de longe, a milícia islâmica recebe apoio de países da região como Eritréia, Iêmen e Uganda.

Apesar de ameaçar transformar o país num Iraque, a popularidade da União das Cortes Islâmicas é incontestável. Ela conseguiu levar ordem e segurança às áreas ocupadas, incluindo Mogadiscio. Bairros destruídos por anos de conflitos entre bandos armados foram recuperados. Além disso, a milícia intensificou o trabalho social - o que significa muito num país onde 20% das crianças morrem antes de completar 5 anos.

Para os somalis, os benefícios compensam a perda de liberdades política e de expressão. Mulheres só podem sair às ruas com véu na cabeça. Bebida e festas são proibidas nas áreas sob controle da milícia muçulmana, que parece se espelhar no regime fundamentalista adotado no Afeganistão pelo Taleban.