Título: A tragédia de ser jovem e bonita no Camboja
Autor: Kristof, Nicholas D.
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2006, Internacional, p. A30
A escravidão parece ser um episódio remoto da História, até que você veja estimativas acadêmicas que dizem que o comércio de escravos - trabalho forçado na prostituição e alguns tipos de trabalhos braçais - provavelmente é maior agora no século 21 do que foi nos séculos 18 e 19.
Ou até que você tome uma estrada de terra esburacada na região noroeste do Camboja e chegue até uma cabana entre um arrozal e um rio e conheça uma adolescente chamada Noy Han. A garota, cujo apelido é Kahan, sofreu as conseqüências da calamitosa má sorte de ser bonita.
O vilarejo em que Kahan vive é uma localidade isolada, cujo acesso é possível apenas por barco, na maior parte do ano. Aqui não há escolas, portanto ela nunca freqüentou uma sala de aula.
Um dia no ano passado, Khort Chan, uma mulher do vilarejo que havia partido quando menina e reaparecera anos depois, ofereceu a Kahan, quando ela estava com 16 ou 17 anos (as idades são nebulosas aqui), um sorvete. E assim que ela o tomou, desmaiou.
Khort Chan levou embora a garota inconsciente num barco e sumiu. Os pais de Kahan deram o alarme e a polícia rapidamente encontrou Kahan abrigada rio acima na cabana da avó de Khort Chan. ¿Chan planejava traficá-la para Pailin¿, um centro de prostituição próximo da fronteira com a Tailândia, disse o policial que a encontrou.
Geralmente, uma garota como Kahan seria aprisionada na casa de um traficante, amarrada e espancada se resistisse, examinada por um médico para certificar-se de sua virgindade e depois vendida por centenas de dólares a um empresário cambojano ou tailandês. As virgens são particularmente procuradas por homens portadores de aids por causa da existência de uma lenda segundo a qual podem ser curados fazendo sexo com uma virgem.
Depois, Kahan seria trancafiada num bordel em Pailin e vendida por US$ 10 a sessão nos primeiros dois ou três meses. O preço acabaria caindo para US$ 1,50 e depois lhe seria concedida maior liberdade.
Tendo sido resgatada, Kahan foi poupada de tudo isso, mas sofreu uma overdose de drogas. ¿Kahan parecia uma pessoa morta¿, contou a mãe, Sang Kha. ¿Os olhos dela se reviravam, ela babava.¿
DÍVIDAS
Mesmo algumas semanas depois, o rosto de Kahan permanecia parcialmente paralisado, ela não conseguia falar e estava fraca e adoentada. Desesperada para obter tratamento médico, Sang Kha tomou US$ 200 emprestados de agiotas, que cobram juros de 20% ao mês, e o tio da garota hipotecou sua casa para ajudar a pagar o tratamento.
Agora a família está falida e grandemente endividada, e Kahan mal consegue balbuciar algumas as palavras. ¿Ainda estou muito fraca¿, foi tudo que consegui que ela dissesse.
A polícia soltou Khort Chan depois de dois dias e não conseguiu seguir o seu rastro. Mas seus vizinhos disseram que, aparentemente, ela havia fugido depois de ter traficado sua própria irmã.
Alguns dos vizinhos acrescentaram alguns detalhes mais complexos à história. Esses vizinhos acreditam que a própria Khort Chan foi vendida a um bordel quando era jovem, e escapou ou deu um jeito de sair do local. Depois ela mesma se transformou numa comerciante de escravas.
E escravidão é o que isto é. O verdadeiro problema não é a prostituição nem o tráfico, mas sim a escravização de pessoas.
AIDS
Certa vez The Lancet, a revista de medicina britânica, calculou que 10 milhões de crianças com 17 anos ou menos trabalham em prostituição no mundo inteiro. Nem todas são coagidas, mas nos piores bordéis de Camboja, Nepal, Índia, Malásia e Tailândia, a principal diferença entre a escravidão do século 19 e a de agora é que, na sua maioria, as vítimas morrem de aids ao alcançar a casa dos 20 anos.
¿Parece quase certo que o moderno comércio global de escravos é maior em termos absolutos do que o comércio de escravos conduzido através do Atlântico nos séculos 18 e 19¿, diz um importante artigo sobre o tráfico publicado na atual edição da revista Foreign Affairs. E acrescenta: ¿Da mesma forma que o governo britânico (depois de muita pressão por parte de seus cidadãos) uma vez usou a Marinha Real para acabar com o problema, as grandes potências de hoje precisam juntar seu poderio econômico e militar em prol desta iniciativa extremamente crucial.¿
Neste aspecto, o presidente George W. Bush tem feito um trabalho muito melhor que seus antecessores - a divisão de tráfico humano do Departamento de Estado é um dos seus poucos sucessos diplomáticos. E a questão goza de apoio bipartidário, contando com líderes republicanos conservadores, como o senador Sam Browback, e democratas liberais, como a deputada Carolyn Maloney.
Assim, presidente Bush, que tal usar seus últimos dois anos no cargo para converter esta questão numa prioridade internacional? Uma leve pressão em seu discurso sobre o Estado da União poderá dar um empurrão num novo movimento abolicionista, de forma a libertar crianças que agora estão morrendo pouco a pouco em conseqüência de estupro e aids porque fizeram algo tão simples como aceitar um sorvete oferecido por uma vizinha.