Título: Herança inflacionária
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/12/2006, Notas e Informações, p. A3
Na superfície, a inflação se apresenta contida. Os principais índices de preços registram variação acumulada em 12 meses inferior a 4%. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que baliza a política de metas inflacionárias, subiu 2,65% de janeiro a novembro deste ano e 3,02% no período de 12 meses encerrado em novembro. Esses números indicam que a meta de 4,5%, com tolerância de 2 pontos porcentuais para mais ou para menos, será alcançada. Isso vai reforçar a credibilidade da política monetária conduzida pelo Banco Central (BC), que foi um dos principais cabos eleitorais do presidente Lula na sua campanha pela reeleição.
No entanto, sob a superfície de aparente tranqüilidade em que navega a política monetária, atuam mecanismos típicos de períodos de inflação descontrolada, que sobreviveram ao Plano Real. Eles são tolerados pelo mercado financeiro e pelo governo, o que pode resultar em danos para o País, pois tais mecanismos criaram uma barreira à queda mais acentuada da taxa básica de juros e, por isso, tolhem o crescimento.
Como mostrou o economista e professor Yoshiaki Nakano, em artigo publicado, na semana passada, no jornal Valor, a introdução do Plano Real não veio acompanhada das reformas necessárias para a preservação da estabilidade monetária. Mantiveram-se instrumentos do regime monetário anterior, como o financiamento da dívida pública no overnight (com compromisso de recompra pelo Banco Central), depósitos remunerados diariamente e com liquidez imediata (característica que os transforma em moeda), recolhimentos compulsórios muito altos, falta de mecanismos de financiamento adequado para o déficit público e, em conseqüência, falta de um mercado de crédito de longo prazo.
Em resumo, os sistemas financeiro e monetário do Brasil continuam com as características dos existentes em países de inflação alta. Nesses países, como o mercado de crédito de longo prazo desaparece, o déficit público é financiado por um sistema que interliga o banco central e os bancos comerciais. Esse sistema leva ao aumento da quantidade de moeda em circulação e de haveres financeiros de alta liquidez, chamados quase-moedas. Diminui muito, em contrapartida, a disponibilidade de recursos para o financiamento do setor produtivo.
Os números apresentados por Nakano em seu artigo impressionam. Em países e regiões com economia estável, como o Japão, a Europa e os Estados Unidos, os recursos com que podem contar as empresas privadas para financiar suas atividades - crédito bancário, capitalização por meio do mercado de ações, mercado para colocação de seus papéis - representam até 330% do PIB; no Brasil, não passam de 66%. Já o setor público brasileiro, que deveria financiar-se de maneira não inflacionária no mercado de capitais, obtém os empréstimos diretamente do setor bancário, que trabalha com moeda ou quase-moeda e destina quase 50% do total de seus ativos para o financiamento da dívida pública. É um índice comparável ao observado em períodos de alta inflação (de até 100% ao ano) na década de 1980.
Outra característica dos tempos de inflação alta que persiste no regime monetário atual é a elevada necessidade de financiamento do governo. O déficit nominal se reduziu para cerca de 3,5% do PIB, o que sugere menor necessidade de financiamento. Mas não é esse déficit que dá a verdadeira medida do apetite do setor público por créditos. O que dá essa medida é a necessidade de rolagem da dívida total, o que tem a ver diretamente com o prazo médio de vencimento dos títulos públicos. No Brasil o prazo é curto, e variou pouco nos últimos anos. Em dezembro de 1999, era de 27,13 meses; em outubro deste ano, segundo o Banco Central, era de 30,27 meses, em média.
Embora operacionalmente o BC tenha adquirido autonomia, o regime monetário prevalecente no País - e que pouco mudou nos últimos anos - limita a eficácia de sua ação. Só haverá verdadeira autonomia, diz Nakano, quando o Banco Central e os bancos comerciais, responsáveis pela criação de moeda e quase-moeda, forem proibidos de financiar o governo e este, se gerar déficit, for obrigado a obter financiamento no mercado de capitais. Isso exige reformas que, por tudo o que tem dito e feito, este governo não parece disposto a promover.