Título: Cubanos aguardam o fim da era Fidel
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/12/2006, Internacional, p. A14

Os cubanos aguardam com aparente serenidade a transição que virá com o fim da era Fidel. Há um claro sinal de despedida no ar, perceptível ao visitante mais atento. Mesmo para quem é veterano em Cuba, o tom oficialesco dos jornais parece exagerado, um tom acima do habitual. Não há dia em que Granma e Juventud Rebelde não dêem destaque ao 'comandante en jefe' em sua página principal. Outro dia, o Granma dedicou duas de suas quatro páginas a um longo artigo intitulado 'As 15 razões para se admirar Fidel'.

O culto à personalidade se estende às televisões, com uma overdose de videoclipes sobre a fase épica da revolução e debates sobre a importância histórica do líder. Tudo, inútil dizer, sem qualquer contraponto ou matiz. É um processo de reafirmação de uma imagem já construída, destinada a reforçar a coesão social para uma transição que o regime pretende sem riscos. O tempo dirá se vai ser assim mesmo.

Não há notícias críveis sobre a saúde de Fidel. Há apenas indícios e os cubanos, mais que qualquer outro povo, parecem aptos a detectá-los, cheirá-los no ar, para adivinhar a direção do vento. Se o capitalismo globalizado sofre da vertigem informativa, o socialismo, ou o que resta dele, padece da indigência de notícias. Nessas condições, a boataria costuma se impor. Semana passada, correu no exterior a 'notícia' de que a morte de Fidel era iminente. Comentei a 'informação' com um taxista e ele riu: 'Mesmo que fosse verdade, o comandante jamais diria isso, pois seria prova de fraqueza.' Essa imagem de Fidel ainda é bem comum em Cuba - o machão, o valente que não se intimida diante do inimigo imperialista, que enfrenta a morte de cabeça erguida.

E os jornais de vez em quando soltam notícias animadoras sobre o líder, numa ambivalência que parece programada. Preparam a despedida ao mesmo tempo em que reafirmam que ele continua vivo e vigilante. O Granma de sábado passado, dia 16, deu como manchete: 'Fidel felicita Chávez e o povo venezuelano pela grande vitória eleitoral'. Na TV venezuelana, a Telesur, captável em Havana, Hugo Chávez confirma a conversa com Fidel. O Granma também afirma que o líder teria telefonado para o seu Burô Político e trocado idéias com dois dos homens fortes cubanos - Carlos Lage Dávila, secretário do Comitê Executivo do Conselho de Ministros, e Ricardo Alarcón de Quesada, presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular. Uma autoridade do governo brasileiro me confidenciou que esteve em uma festa, falou com o filho de Fidel e este garantiu que o pai está consciente, com a situação de saúde estável, evoluindo 'para melhor'. Mas acrescentou que os médicos é que sabem do futuro.

Pelo sim, pelo não, todos se preparam. Mesmo porque ninguém crê que Fidel reassuma seu cargo de maneira completa. Acredita-se que possa ter uma sobrevida, mas é só. A transição é inevitável, e todos sabem disso. Por isso paira no país essa sensação de despedida. O clima depressivo foi sentido até mesmo na entrega de prêmios do recém-encerrado Festival de Cinema de Havana. Normalmente festiva, a cerimônia, várias vezes no passado prestigiada por Fidel Castro em pessoa, teve tom fúnebre, burocrático. Na platéia, um convidado de honra: o escritor Gabriel García Márquez, amigo pessoal do comandante, que não pronunciou uma única palavra .

García Márquez esteve no festival para as comemorações de 20 anos da Escola de Cinema de Cuba, da qual é um dos fundadores e patronos. Mas os freqüentadores mais antigos notaram que várias personalidades de peso da esquerda européia, habitués do festival, como Ettore Scola, desapareceram de Havana. O comunista José Saramago rompeu com o regime de Castro há alguns anos. Não há mais um Sartre que se solidarize incondicionalmente com a revolução dos barbudos. Faz já alguns anos, os intelectuais engajados têm sido substituídos pelos turistas em Havana.

O turismo de massa foi uma das formas encontradas para contornar a crise econômica e hoje é a principal fonte de divisas do país. O que esses turistas encontram em Cuba, em Havana em particular, além dos mojitos, daiquiris e charutos incomparáveis? A simpatia extrema de um povo que se parece com o que foram os brasileiros 30 ou 40 anos atrás. E, sim, Cuba fornece um último vislumbre da era comunista. Havana pode ser vista pelo turista como um parque temático da revolução, com seus cartazes antiimperialistas estrategicamente colocados em frente à representação comercial americana, os outdoors patrióticos e lojas de souvenirs engajados.

Sobre a transição política da era pós-Fidel, existem os que acreditam que será rápida e radical, como deseja a comunidade cubana exilada em Miami. Há os que acham que será lenta e gradual, porém inexorável em direção ao capitalismo e à democracia. E existem os que acham que na realidade ela já está acontecendo, como é o caso do historiador britânico Richard Gott, autor de Cuba - uma Nova História (Jorge Zahar Editor, 2006). Gott diz que, enquanto observadores superficiais acreditam que Cuba seja uma gerontocracia, na verdade o poder decisório já passou para mãos de jovens talentosos, como Alarcón e Lage. Raúl Castro comanda o exército e Fidel é um chefe de Estado, agora envelhecido e doente, que simboliza as conquistas revolucionárias. Quando morrer, tudo prosseguirá no rumo já traçado. Mas estas são teses que ainda precisam passar pela prova dos noves da História, que costuma tornar risíveis as previsões dos profetas.