Título: Infidelíssimos representantes
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/12/2006, Notas e Informações, p. A3

Se no Brasil, há muito tempo, a infidelidade partidária é a notória doença crônica do sistema político - a ponto de a fidelidade ser sempre o primeiro item a ser incluído nas agendas da reforma política que os partidos estudam e analisam, mas nunca concretizam -, a exacerbação desse velho vício está associada à degenerescência que levou à pior legislatura já havida na História desta República. Não é mera coincidência, pois, o fato de que neste tão desmoralizado período legislativo que se encerra ter ocorrido verdadeiro recorde no troca-troca de legenda, tendo nada menos do que 195 deputados - correspondendo a 38% do total - mudado de partido.

Segundo levantamento da Secretaria-Geral da Câmara dos Deputados, nestes quatro anos os parlamentares fizeram 345 mudanças de partido. Houve casos de deputados que trocaram sete vezes de sigla. Alguns permaneceram apenas um ou dois dias numa legenda! E a alta rotatividade dos deputados está aumentando. Na legislatura anterior (1999-2003), por exemplo, 174 deputados fizeram 281 trocas de partido. Agora, a comprovar a tendência fisiológica, que leva oposicionistas a ceder à atração irresistível do poder, houve mais mudanças no ano seguinte ao da primeira eleição do presidente Lula e no ano que antecedeu a disputa pela reeleição, quando a vitória do presidente nas urnas já eram favas contadas.

Só mesmo a total frouxidão de convicções doutrinárias e ideológicas - ou ¿programáticas¿, para usar termo freqüentemente utilizado para justificar adesismos - faria com que 47 deputados originários do PSDB e do PFL (os partidos oposicionistas por excelência) tivessem pulado para partidos governistas. E que fiquem marcados os nomes dos campeões do troca-troca, aqueles dois parlamentares que cometeram o vexame de mudar de partido sete vezes: Alceste Almeida (PR) e Zequinha Marinho (PA). Mais importante de reter, no entanto, é a profunda distorção que a leviandade na substituição de partidos causa ao processo da representação parlamentar e todas as conseqüências - éticas e comportamentais - que dela decorrem.

Um detentor de mandato legislativo que troca de partido como quem troca de camisa representará, na verdade, quem? Que causas ou bandeiras de luta poderá abraçar? É claro que essa fluidez - doutrinária, ética, política - desperta, nos poderosos de plantão, a incontida tentação da cooptação, a qualquer preço. Quem muda de lado com facilidade, ao sabor de suas conveniências imediatas, é um candidato destacável à venda de apoio, de voto, de consciência. Não foi sem razão, assim, que na legislatura mais partidariamente cambiável de que se tem notícia na história política do Brasil contemporâneo, veio à tona a execrável prática do mensalão. O que essa prática revelou, no fundo, foi o profundo desrespeito pela dignidade do mandato outorgado pelos eleitores. Até mesmo o eleitor que seja, ele mesmo, um vendedor de voto - o que infelizmente ocorre, na triste conjugação do estado de necessidade com a ignorância (ou a simples falta de vergonha) - é capaz de sentir profundo desprezo por aquele em quem votou, quando este troca de partido, seja por conveniência argentária, seja para colher as sobras do poder.

Desmoralizado o princípio da representação parlamentar, pela transição irresponsável entre legendas - e o esvaziamento completo das motivações doutrinárias -, o que sobra são bandos de pessoas que conspurcam seus mandatos legislativos na tentativa de atender exclusivamente a seus próprios interesses e no trabalho em causa própria.

São estes os parlamentares que criam o caldo de cultura para a manutenção de descabidas regalias, como os 15 salários anuais, as ¿verbas indenizatórias¿ e inúmeras outras mordomias, assim como a irresponsável disposição para afrontar toda a população do País com a pretensão de reajustar os próprios ganhos em 91%, quando, pela inflação, haviam se desvalorizado apenas 28%.

A infidelidade partidária tornou-se extremamente nociva ao processo político e à democracia representativa. Se essa distorção não for corrigida, e logo, os próprios políticos malbaratarão o pouco que resta do prestígio do Congresso.