Título: Ditadura populista à mão
Autor: Chaves, Mauro
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

Como se explicam os inacreditáveis resultados das mais recentes pesquisas de opinião sobre avaliação do governo Lula, uma (Datafolha) considerando Luiz Inácio Lula da Silva o melhor presidente da República que já houve na História do Brasil e a outra (CNI/Sensus) detectando um aumento substancial da porcentagem de aprovação do governo desde a reeleição? Teria a população brasileira enlouquecido de vez? Enxergou ela - com todo o imbróglio que tem significado o processo de cooptação partidária para a montagem da base de apoio parlamentar do governo, com todo o loteamento de cargos para a decomposição, digo, recomposição das equipes ministeriais, atendendo aos mais variados apetites fisiológicos da súcia política, com toda a paralisia administrativa e a incapacidade gestora sintetizada, tragicamente, no apagão aéreo - algum crescimento na atuação do chefe de Estado e de governo, enquanto em termos de crescimento o Brasil só continua orgulhosamente à frente do Haiti?

Se o carisma de Lula não aumentou, se o presidente não deixou de pronunciar os habituais disparates, se seu impávido combate ao vernáculo não arrefeceu - ao contrário, recrudesceu -, por que ele haveria de ser ainda mais aceito do que foi, quando se reelegeu com portentosa votação? A razão disso não é nenhum surto de loucura coletiva, mas um simples fenômeno de adesão à força que mais se opõe ao mal maior: e este mal maior é um Congresso definitivamente desmoralizado perante a opinião pública, ao encerrar-se a pior de todas as legislaturas da História da República.

Desde que Lula teve a coragem de dizer, há tempos - e nisso nunca foi contestado por ninguém, de partido algum -, que no Congresso há, no mínimo, 300 picaretas; desde que seu governo e seu partido revelaram, mais do que quaisquer outros na História, um profundo desprezo pelos detentores de mandatos legislativos, a ponto de vir à baila o inédito processo de compra de consciências alcunhado ¿mensalão¿, que reduziu a pó quaisquer resquícios da dignidade parlamentar; desde que transformou um presidente de Casa Legislativa em simples pau-mandado do Planalto, defensor subserviente do governo mesmo quando devia defender - frente ao Planalto - a instituição que lhe cabia comandar, o presidente Lula se tornou a figura-símbolo anti-Congresso.

Se os institutos de pesquisa tivessem a coragem (ainda bem que não têm) de fazer uma ampla pesquisa, para saber se a maioria da população é favorável ou não ao fechamento do Congresso Nacional, com toda a certeza uma vasta maioria do eleitorado se manifestaria a favor desse fechamento - em porcentual talvez semelhante ao da retumbante vitória reeleitoral de Lula. A rigor, quem derramaria lágrimas de saudade pelo sumiço de tamanho bando de sem-vergonhas (com as honrosas exceções de praxe), que trabalham, no máximo, dois dias por semana, ganham 15 salários por ano, desfrutam de todas as mordomias imagináveis, absolvem covardemente - por votação secreta - seus mais notórios criminosos e, ainda por cima, se dispõem a reajustar em 91% sua remuneração, que se desvalorizou, pela inflação, apenas 28% - o que obrigou uns poucos gatos-pingados a recorrerem à Justiça para reverter essa megaindecência?

¿Apesar de tudo, Lula ainda é melhor do que toda essa cambada¿ - é o provável raciocínio dos que, nas pesquisas, aumentam seu apoio ao presidente da República, à medida que mais chafurda no lodaçal a reputação do ilustre colegiado congressual brasileiro. Pois o povo precisa apoiar-se em alguma coisa, para não cair em total desespero. Por outro lado, estando o regime de democracia em pleno processo de desmoralização global, por obra e graça de George W. Bush; crescendo na América Latina a força política do talentoso caudilho Hugo Chávez - de quem nosso presidente, muito mais que Evo Morales, tem toda a capacidade de se tornar um inestimável regra-três -, as condições para a instalação de uma ditadura populista no Brasil se vão tornando as mais propícias. Em seu emocionado segundo discurso de diplomação, além de não ter conseguido deter as lágrimas, o presidente Lula também não conseguiu deter a sincera intenção de aniquilar os ¿intermediários¿ que se antepõem ao seu contato direto com o povo. Bem entendido, tais ¿intermediários¿ só podem ser os que exercem mandatos de representação popular - pois nas democracias a intermediação se faz pela representação parlamentar.

À esmagadora popularidade de Lula registrada nas pesquisas, à redução da imagem do Congresso a um dispendioso antro de bandalheiras e à grife inspiradora de Hugo Chávez, disposta a chacoalhar a América e o mundo, somem-se, agora, os indícios já detectados de medidas populares de impacto, em pacote econômico preparado pelo Planalto, destinadas a multiplicar o assistencialismo às camadas populares e seu consumo de produtos baratíssimos, que, num processo de inédita solidariedade intercontinental, aumente os empregos na China (embora acabe com os nossos). O senador Cristovam Buarque já se referiu à ¿tentação autoritária¿ que a extrema popularidade de Lula pode despertar. Mas para essa tentação, como se vê, há uma penca de fatores.

O fato de Lula ter uma ditadura populista à mão não significa que vá, necessariamente, implantá-la. Para tanto necessitaria de bons estrategistas e operadores - e nada indica que tenha encontrado um substituto para Zé Dirceu. Então, sejamos otimistas. Ainda há chance de nossa democracia ser salva, pela incompetência.

P. S.: Que os mensaleiros, sanguessugas, marajás e demais predadores da ética pública não tenham uma bruta indigestão na ceia de amanhã à noite. Isto é o máximo que o espírito natalino nos leva a lhes conceder. Feliz Natal.