Título: A vitória de Lula e o segundo mandato
Autor: Dupas, Gilberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

Para além das profundas raízes populares e da marcante personalidade política de Lula, são fáceis de entender as razões do seu segundo mandato: o desempenho social e econômico do seu governo, ainda que se beneficiando de um momento internacional muito favorável, superou com folga o do período FHC. O desemprego caiu, a informalidade reduziu-se, o salário mínimo teve importante evolução, a renda real média recuperou-se e houve sensível redução da pobreza com incorporação de 6 milhões de pessoas das classes D e E à classe C. As exportações dobraram, gerando notável recuperação do saldo comercial e zerando a dívida líquida externa. O programa Bolsa-Família, com gestão eficiente e pouca contaminação do varejo político, conseguiu atingir mais de 11 milhões de famílias e se constituir, juntamente com a ampliação da aposentadoria, numa importante ajuda para as classes baixas. Finalmente, o crescimento econômico, se foi pequeno em função das possibilidades que o momento internacional permitia, conseguiu ser um pouco superior à média do governo anterior.

Nenhuma surpresa, pois, com a conquista de Lula, especialmente quando exposto a um adversário muito aplicado, mas com pouco carisma e sem claras propostas alternativas. Com a guinada ao centro a partir da Carta aos Brasileiros - que permitiu um pacto de governabilidade com parte significativa das elites em torno da ortodoxia monetária e fiscal - e com volumes e preços dos produtos básicos em forte alta pelo crescimento excepcional da China, Lula construiu um caminho conservador na economia e criativo na retórica. Sua política externa soube aproveitar a radicalização do quadro internacional, permitindo espaços para uma ação mais agressiva sem prejudicar as relações com o governo norte-americano, que vê Lula como um moderado de esquerda em meio a ¿radicais¿ como Hugo Chávez, Evo Morales ou um Néstor Kirchner desafiador do FMI, com sua bem-sucedida moratória.

Os passivos para o segundo mandato são difíceis. Os principais já vinham do governo anterior: a dívida interna e a da Previdência. Com medidas mais arrojadas de política econômica poderíamos ter crescido mais e atenuado ambos. Mas os tucanos acabaram deixando claro que não teriam feito diferente, até porque sempre elogiaram a ação econômica de Lula como a ¿única coisa boa de seu governo¿. A dívida interna líquida, que FHC recebeu em 25% do PIB, entregou-a em 45%; Lula elevou-a a 50%. A da Previdência também já vinha crescendo; Lula fez a pequena e insuficiente reforma que a coalizão de forças daquele momento permitiu. Há, evidentemente, um passivo novo: a ampla transparência sobre os inúmeros casos de corrupção. Com isso, agir duramente para melhorar os padrões éticos da República - além de saber separar alhos de bugalhos - passa a ser um dos grandes desafios para a sua próxima gestão.

Mas por que as graves crises do ¿mensalão¿, dos ¿sanguessugas¿ e do ¿dossiê¿ não liquidaram o caminho de Lula para o segundo mandato? Também não é difícil entender. A inflação baixa, os programas sociais e as transferências de renda já estavam fazendo seus efeitos entre os mais pobres quando as crises políticas começaram a explodir, em 2005. A economia internacional aquecida criava condições para um crescimento superior a 3%, aliviando tensões. Metido no olho do furacão, Lula soube recompor o núcleo de governo com eficiência e manter condições de governabilidade. Ele foi ajudado pela hesitação do PSDB em radicalizar e ser chamuscado pelo próprio fogo que assoprava; e conseguiu relativizar a questão da corrupção, classificando-a de ¿sistêmica¿ e lançando conexões com o governo passado. Finalmente, o perigo de um debate eleitoral contra uma alternativa desenvolvimentista corajosa - que Serra teria tido condições de propor - foi abortado com a imposição de Alckmin.

Enfim, o presidente conseguiu ¿separar-se¿ da crise política, liderou amplamente nos Estados mais pobres e melhorou no final também entre os mais ricos, no arrastão de ganhador. Sorte de Serra, talvez o grande vitorioso destas eleições, já que agora pode planejar seu futuro sem a sombra de Lula. Se souber, no governo de São Paulo, realizar uma gestão criativa e competente, retirando algumas bandeiras populares das mãos exclusivas de Lula e conseguindo mais somar que dividir - seu grande desafio -, o caminho de Serra estará bem pavimentado para 2010.

Lula e o Brasil precisam agora de uma nova coalizão para enfrentar temas essenciais logo no começo da gestão: reforma política, reforma fiscal e segundo capítulo da Previdência. O presidente estará de olho no novo PSDB de Aécio e Serra, que estarão de olho em suas próprias chances para suceder a Lula. Mas é importante que nesse jogo - inerente à política - haja lugar para as prioridades do País; precisamos reencontrar já um espaço estratégico corajoso que nos permita voltar a crescer em níveis compatíveis com nossas demandas sociais básicas, que não podem depender eternamente do Bolsa-Família. E, para tanto, uma base política ampla é necessária. No balaio de gatos do PMDB há agora os pesos pesados Nelson Jobim e Delfim Netto, este ainda que sem mandato.

Se não houver uma crise forte na área internacional, e com uma redução mais dura da taxa de juros, em tese há condições para manter um crescimento entre 3,5% e 4% ao ano, o que é menos do que precisamos. Mas, se houver turbulência maior via ajustes nos EUA e na China, o quadro pode-se complicar e Lula cair na maldição dos segundos mandatos. Esperemos os primeiros movimentos dos vencedores e a evolução do quadro internacional para enxergarmos melhor o que nos pode aguardar.