Título: Uma disputa a ser evitada
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/11/2006, Notas e Informações, p. A3

Não bastassem as liminares pedidas pelo Ministério Público de Rondônia e concedidas pela Justiça local, outro obstáculo pode tumultuar o projeto de construção de duas usinas hidrelétricas no Rio Madeira. O Ibama já esclareceu que não poderá emitir a licença ambiental prévia - imprescindível para que sejam leiloadas as concessões das Usinas de Santo Antonio, com 3.150 megawatts, e de Jirau, com 3.300 megawatts - antes de janeiro ou fevereiro. Até dias atrás, o Ibama prometia emitir a licença ainda em novembro. Mas as liminares obtidas pelo Ministério Público, embora derrubadas depois, provocaram o adiamento das audiências públicas e, conseqüentemente, o prazo de apresentação do estudo de avaliação do relatório de impacto ambiental pelo Ministério Público.

Os percalços na concessão de licenças ambientais já se tornaram rotina e, diga-se de passagem, o processo relativo ao Complexo Hidrelétrico do Madeira tem tramitado em velocidade pouco usual - o que demonstra o empenho das autoridades federais na construção das usinas. O obstáculo que surge agora, ainda que sob a aparência de preocupação ambiental, é de outra natureza e tem origem na Bolívia.

O Fórum Boliviano sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Fobomade) - constituído por organizações não-governamentais, associações de pescadores, lideranças indígenas, professores da Universidade Autônoma de Beni e políticos do Departamento de Beni - está exigindo do presidente Evo Morales que faça gestões junto ao governo brasileiro para impedir a construção das usinas. Os movimentos sociais argumentam que as duas usinas, que serão construídas a 25 e a 40 quilômetros de distância da fronteira, reduzirão a velocidade das águas do Madeira, piorando a qualidade da água; que aumentarão o processo de sedimentação do leito do rio, elevando o nível dos afluentes bolivianos do Madeira; que haverá menos diferença entre os períodos de cheia e estiagem, prejudicando a agricultura sazonal e ocasionando surtos de doenças como dengue e malária.

Já os estudos feitos por Furnas e pela Construtora Odebrecht, responsáveis pelo projeto, não prevêem tais impactos na parte boliviana do Rio Madeira.

O documento pede a Morales, ¿em caráter de suma urgência, que intervenha imediatamente ante o governo do Brasil e ante os organismos internacionais, como as Nações Unidas, em defesa do nosso território¿. Os movimentos sociais que se opõem à construção das usinas têm influência junto ao governo boliviano e conseguem mobilizar a opinião pública. Há dias, o jornal La Razón publicou editorial criticando o governo brasileiro por ¿ignorar normas para o uso de águas que são de curso internacional¿. E o ministro da Água promete que o governo boliviano divulgará posição oficial nos próximos dias. Sendo o presidente Evo Morales extremamente suscetível às pressões exercidas pelos movimentos sociais e dado a patriotadas - ele pôs o Exército de prontidão para negociar um contrato com a Petrobrás -, não será nenhuma surpresa se ele criar um incidente diplomático.

O Brasil tem uma grande experiência na administração de crises provocadas pelo aproveitamento de rios transnacionais. Em meados da década de 1970, o relacionamento com a Argentina chegou a seu pior nível, em mais de um século, porque o governo de Buenos Aires queria impedir o Brasil de construir, em sociedade com o Paraguai, a Usina de Itaipu. Os argumentos dos argentinos eram muito semelhantes aos que hoje apresentam os bolivianos. Com uma diferença: os militares afirmavam que o reservatório de Itaipu era uma bomba - abertas as comportas, as águas liberadas inundariam Buenos Aires.

O governo brasileiro defendeu com intransigência o direito soberano de construir a usina em seu território. O então chanceler Azeredo da Silveira resumiu a posição de princípios da qual o Brasil não arredaria pé: ¿O Brasil considera que é um direito inerente à soberania do Estado o livre uso e aproveitamento dos recursos naturais em seu território. Tal direito não pode aceitar restrições (...). Subordinar o aproveitamento soberano dos recursos naturais próprios a consultas de caráter suspensivo seria introduzir intolerável perturbação na ordem internacional.¿

O governo boliviano deve ser notificado, no momento oportuno, de que essa é a posição inarredável do Brasil.

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