Título: Tragédia de erros
Autor: Souza, Paulo Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

Assistimos nesta última semana a mais um lamentável episódio da desabalada corrida do atual Congresso Nacional para a sua autodesmoralização. A reação da sociedade impediu que se concretizasse um aumento salarial para os parlamentares totalmente descabido, tanto pela forma como foi decidido quanto pelo montante completamente fora da realidade econômica e social de nosso país. Entretanto, o debate acalorado nos meios de comunicação, inclusive através da internet, deixou de considerar outros aspectos igualmente importantes e preocupantes em relação aos rumos que nosso país vem trilhando nos últimos anos. Não se pode desperdiçar agora a oportunidade para uma reflexão menos apaixonada sobre esse tema.

Em primeiro lugar, uma palavra a respeito do processo de tomada de decisão sobre o reajuste, adotado por uma resolução das Mesas da Câmara e do Senado. Isso só aconteceu porque está vigente uma interpretação da legislação que permite a reeleição dos presidentes das duas Casas entre uma e outra legislatura. Tenho plena consciência de que juridicamente o assunto é controverso e de que no passado a mesma interpretação permitiu a recondução de figuras que honraram o Parlamento brasileiro. Entretanto, o presente episódio demonstra o risco do mau uso dessa prerrogativa e aconselha à sua revisão para que as regras que limitam a reeleição das Mesas Diretoras sejam adotadas de forma perene e intransigente.

O tema mais importante que tem sido esquecido no debate público atual, contudo, não é esse, mas sim o próprio conteúdo da medida adotada: o valor absoluto da remuneração que se pretendeu outorgar aos parlamentares, em face da realidade das remunerações vigentes na sociedade brasileira e em especial no setor público. A disparidade de renda e de remunerações em nosso país é um fato que podemos constatar no dia-a-dia, mesmo que não contemos com informações cientificamente produzidas. Nesse universo, apesar de uma remuneração mensal de R$ 25 mil não ser exceção à regra entre executivos do setor privado, ela se situa várias vezes acima da realidade vivida pela esmagadora maioria da população brasileira, que constitui a massa do eleitorado a quem as autoridades públicas devem contas e explicações. Os líderes partidários e dirigentes das Casas congressuais não tinham o direito de fingir desconhecer essa realidade. Diga-se de passagem que, na imensa maioria dos países, os salários do alto escalão no setor público são significativamente inferiores aos correspondentes no setor privado.

Entretanto, nós nos esquecemos da raiz da ¿racionalidade¿ alegada pelos parlamentares para adotarem a medida: a da equiparação com o Poder Judiciário. Subitamente, foi abandonada a discussão que estava muito presente há duas semanas nos meios de comunicação de todo o País: a possibilidade ou legalidade de esse mesmo teto ser excedido por integrantes de várias carreiras ou de instâncias do Judiciário. Ou seja, não só esse nível de remuneração - que a maioria da sociedade considerou escandaloso - existe no setor público brasileiro, como é também considerado ¿baixo¿ por parte de dirigentes de algumas carreiras de um dos Poderes da União. Além disso, os processos de tomada de decisões a este respeito não têm sido mais democráticos ou transparentes do que os métodos frustrados que os dirigentes do Congresso pretenderam adotar. Esse tema nem de longe tem despertado a reação provocada pelo aumento dos parlamentares.

A situação, infelizmente, não é diferente dentro do próprio Poder Executivo, no qual, nos últimos anos, várias carreiras obtiveram benefícios salariais superiores às remunerações do presidente da República e dos ministros de Estado, aproximando-se - ou até os superando - dos padrões vigentes no setor privado para carreiras comparáveis de caráter técnico ou especializado. Elas foram beneficiadas em função de movimentos reivindicatórios acompanhados de greves em áreas sensíveis do governo por parte de corporações com alto poder de negociação. Em contraste, estamos vivendo o ¿apagão aéreo¿, entre outras razões, pelas baixíssimas remunerações da carreira altamente especializada e estressante dos controladores aéreos.

A questão das remunerações do setor público federal talvez seja uma das áreas mais emblemáticas para mostrar a falta de visão global dos problemas do País de que padece o atual governo. Não há uma política salarial global e todos os reajustes concedidos o foram em função de pressões das várias corporações que se inserem no setor público. Em relação aos demais Poderes, obviamente não se postula que o Executivo interfira nas questões de remuneração. Entretanto, num sistema presidencialista como o nosso, sem dúvida cabe ao presidente da República o exercício de uma liderança nacional que tenha influência positiva nos temas mais sensíveis da vida nacional. Certamente a desigualdade de renda e de remunerações é um desses temas, ainda mais porque privilégios permitidos a determinados segmentos de servidores públicos tendem a provocar um efeito em cascata sobre outros setores que eventualmente detêm maior poder de reivindicação. Não é por acaso que as disparidades salariais no setor público como um todo aumentaram significativamente nos últimos quatro anos.

Esta será uma futura herança maldita do atual governo, difícil de ser enfrentada. O presidente Lula ainda terá quatro anos para tentar alterar esse prognóstico.