Título: Desatinos e despautérios
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

O STF sustou o reajuste salarial de 90,7% de deputados e senadores, mas a maldade, fruto de oportunismo e insensatez, foi perpetrada. A intenção de fazer uma coisa ruim é tão perversa como o próprio ato. Os dirigentes do Parlamento capricharam na tática. A idéia era duplicar salários às vésperas das festas animadas pelo velhinho Noel, quando a balbúrdia ambiental pela caça de presentes amortece os decibéis da política e a azáfama nas lojas embaralha a visão, afastando-a dos atores políticos. O cambalacho não deu certo porque os feitores das leis, imaginem, cometeram ilegalidade. Para ter salário superior ao que ganham parlamentares europeus e norte-americanos, S. Exas. devem usar decreto específico e submetê-lo à aprovação do plenário do Senado e da Câmara. A sorrateira operação, flagrada e abortada por decisão soberana da Corte mais alta do País, é mais que reveladora da prática abominável de cooptação na base do apelo ao bolso. Aldo Rebelo e Renan Calheiros não foram flagrados distribuindo dinheiro. Mas se torna evidente que o escandaloso aumento salarial, patrocinado por eles, consolidaria suas candidaturas à presidência das Casas parlamentares.

O ensaio geral da peça que abrirá o teatro político, a partir de fevereiro, demonstra que na esfera parlamentar ponto e contraponto não são necessariamente opostos. Vale tudo pela causa. Que causa? O poder. Pensava-se que a alma de Rebelo fosse tão rígida na aplicação da receita do velho PCdoB quanto os tesos músculos de sua face. Pensava-se que partido comunista fosse inflexível em matéria de esbanjamento. Mas a máscara do teatro chinês que esconde a fisionomia do presidente da Câmara cumpre apenas a função de distanciá-lo do personagem. No camarim, de volta à realidade, o ator tira a carapuça, liturgia aprendida no teatro brechtiano, resgata a humana identidade e se senta nas arquibancadas. Renan, por sua vez, aprendeu teatro com Constantin Stanislavski, o mestre russo que obrigou os atores a vivenciarem intensamente o papel, revivendo-o, e não o representando. Este alagoano, hábil articulador, tem dado nó em pingo d¿água desde os vibrantes tempos de Collor. Quando viu a indignação subir ao pico da montanha, saiu de fininho, deixando o colega alagoano deputado por São Paulo com a missão de defender o indefensável. Ao final, a emenda ficou pior que o soneto: Aldo poderá perder o comando da Câmara.

A quase trambolhada serve para demonstrar que o ano da escuridão total, que acolheu a ¿pior legislatura¿ dos últimos tempos, não mexeu com o rubor de muitos parlamentares. A lição que se extrai aponta na direção de uma cultura refratária às mudanças. Manobras feitas à sorrelfa se repetem. Os cambalachos continuam em plena luz do dia. A forma pode ser diferente, mas a seiva provém de farisaísmo, compadrismo, grupismo e fisiologismo. Pior é verificar que o Brasil pós-mensalão continua o mesmo. Conselhos de Ética e depoimentos constrangedores fazem parte das calendas. Já não se fala dos lamentáveis episódios que enlamearam fatias gordas do Parlamento. Mas é confortável constatar que um grupo que não verga a espinha ante o cofre de Tio Patinhas consegue, com armas curtas e pouca munição, enfrentar os exércitos da mediocridade que procuram impor interesses venais ao ideal da coletividade, explorando a política como negócio. São poucos, mas a grandeza emanada por sua expressão, incluindo o mandado de segurança impetrado no STF contra o aumento-gigante por pequeno grupo de deputados, haverá de calar fundo na alma cívica da Nação.

A política é o estuário das expectativas e demandas sociais. Duas referências animam seus eixos: os ¿credenda¿, coisas a serem acreditadas, a partir do sistema legal, e os ¿miranda¿, coisas a serem admiradas, a partir dos símbolos. Daí a inescapável pergunta: o que há para crer na política brasileira e o que há para admirar? Aos ouvidos chega o eco: nada. As razões para tanto se abrigam em campos múltiplos, mas a origem dos males recentes é a consolidação do PNBC (Produto Nacional Bruto da Corrupção), cuja raiz quadrada se extrai dos números que a esfera privada subtrai da res publica. Crer nas leis? Como, quando a própria Lei Maior é tortuosa? A Carta Magna tornou-se bíblia ilegível com suas mais de 50 emendas. Milhares de leis são esquecidas, outras, derrogadas ou descumpridas. As bulas da admiração estão rotas. Há um ídolo, um herói, um pai da Pátria que mereça aplausos gerais? Quantos brasileiros são capazes de cantar até o fim o Hino Nacional? A dialética da mudança está com o sinal invertido. Basta ver. O corpo parlamentar ganha o mandato que o povo lhe concede para atender a suas demandas, ou seja, para promover os avanços. Que só ocorrem quando a pressão social se faz insuportável. Duplicar salários, numa quadra que clama por vergonha na cara, exemplos de dignidade, zelo e contenção de gastos públicos, é a mais cabal demonstração de barbárie.

Maquiavel predizia: ¿Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas.¿ Implantar uma nova ordem na cultura política brasileira é tarefa para duas a três gerações.

Ressalte-se, no fechar das comportas dessa avalanche de água suja, o olho aceso da sociedade. Não se pode medir a revolta exclusivamente sob a ótica de pequenas mobilizações feitas por centrais sindicais e núcleos. Em todos os espaços sociais, a voz corrente é: o copo transbordou. Não dá mais para aceitar os tsunamis que devastam o espaço público. Nossa História registra uma frase lapidar a que as elites recorrem desde os tempos de Vargas, na década de 30: ¿Façamos a revolução antes que o povo a faça.¿ O conceito original pode estar defasado. Que uma revolução de costumes, porém, se faz premente, ninguém tem dúvida. A próxima legislatura começará ¿sub judice¿. Desatinos e despautérios estarão em observação.

P. S.: A pensão mensal e vitalícia para o governador Zeca do PT, aprovada pela Assembléia de Mato Grosso do Sul, é mais um despautério.