Título: Interesse é o de retirar tropas antes de 2008
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/11/2006, Internacional, p. A20

Agora que o povo americano reconheceu que a guerra no Iraque é sem esperança, o que vem em seguida? A resposta: os Estados Unidos vão reduzir suas perdas e se retirar. Mais provavelmente, a retirada começará dentro de alguns meses e estará mais ou menos terminada no último trimestre de 2007. Se não, a guerra dominará as próximas eleições americanas, as presidenciais, como dominou as recentes, de meio de mandato, e isto é algo que nem os democratas nem os republicanos querem que aconteça.

Retirar 140 mil homens com todo seu equipamento é uma operação muito complexa. Em 1945 e 1973, os EUA simplesmente retiraram suas tropas, deixando a maior parte do equipamento para seus protegidos europeus ocidentais e sul-vietnamitas, respectivamente.

Desta vez, porém, as coisas são diferentes. O moderno equipamento de defesa é tão precioso que nem mesmo a maior potência da Terra pode se dar ao luxo de abandonar grandes quantidades dele. Nesse ponto, o modelo é a primeira Guerra do Golfo e não o Vietnã ou a 2ª Guerra Mundial.

Além disso, qualquer equipamento deixado no Iraque muito provavelmente cairá nas mãos de inimigos dos EUA. Portanto, o Pentágono não terá escolha senão retirar milhões de toneladas de material bélico do jeito que ele entrou - em outras palavras, pelo menos até o Kuwait. Isso toma tempo e será imensamente caro. Inevitavelmente, também envolverá baixas quando os comboios terrestres a caminho do sul sofrerem emboscadas e bombardeios.

O Iraque que as forças americanas deixam para trás ficou devastado. Sua infra-estrutura foi destruída, a indústria do petróleo, que respondia por 90% de sua receita, está em ruínas. Uma estimativa recente estima as mortes em 150 mil.

O pior é que não existe um governo à vista capaz de controlar a situação. Na sua falta, xiitas e sunitas certamente irão lutar uns contra os outros por muito tempo - isso sem falar na disputa interna entre grupos xiitas.

Os beneficiários serão os curdos. Já faz algum tempo que eles vêm expulsando silenciosamente a população árabe das províncias do norte do Iraque, assentando as bases para seu próprio Estado futuro.

Um Iraque reunificado levará tempo para surgir, se surgir. Um Iraque fragmentado fortalecerá - na verdade já fortaleceu - a posição do Irã. Teerã seguramente desempenhará um importante papel na determinação do futuro do Iraque, mas em qual direção exercerá sua influência e o tamanho do impacto desta ninguém pode saber. Uma coisa, porém, é absolutamente certa. Para garantir que algum futuro presidente americano não pense em atacar o Irã como o Iraque foi atacado (essencialmente, por nenhuma razão), os iranianos acelerarão ao máximo a produção de armas nucleares.

Um Irã poderoso representa uma ameaça aos suprimentos mundiais de petróleo e por isso deve preocupar Washington. Para dissuadir o Irã, forças americanas terão de permanecer na região num futuro indefinido; mais provavelmente elas serão divididas entre o Kuwait, boa parte do qual já virou uma vasta base americana; Omã; e alguns outros Estados do Golfo. Só resta esperar que as forças em questão, e a vontade política por trás delas, serão fortes o bastante para impedir que o Irã se envolva em aventuras. Se não, que Deus nos ajude.

Alguns países do Oriente Médio deveriam ficar ainda mais preocupados com o Irã que os EUA. Mesmo recorrendo a estes últimos para proteção, vários deles quase certamente darão uma segunda olhada na possibilidade de iniciar seus próprios programas nucleares.

Cada vez que a proliferação nuclear chega a um país, seus vizinhos se perguntarão se eles também não terão de fazer o mesmo. Com o tempo, Arábia Saudita, Turquia, Egito e Síria poderão ter arsenais nucleares. Como isso afetará o equilíbrio de poder regional é algo impossível de se saber.

Um Iraque desgovernado, em estado de guerra civil crônica, será um celeiro ideal para terroristas de todos os tipos. Presumivelmente, a maioria dos terroristas desejará meramente participar, se aproveitar, da guerra civil em si, mas alguns investirão contra os regimes de países árabes vizinhos, como Jordânia e Kuwait. Alguns poderão alcançar o Líbano, outros Israel. Outros ainda tentarão estender suas atividades para o Ocidente. Um outro Osama bin Laden, estabelecendo seu quartel-general em algum ponto do Iraque e dirigindo suas operações dali, é uma nítida possibilidade.

Antes de 2003, muitos viam os EUA como um colosso dominando o mundo. Entre outras coisas, a guerra enfraqueceu a posição internacional do país; a secretária de Estado, Condoleezza Rice, pode latir, mas dificilmente conseguirá morder. As Forças Armadas americanas estão tão esfaceladas e desmoralizadas que só conseguem preencher suas fileiras alistando vovozinhas de 41 anos. Daí que a primeira tarefa que terá Robert Gates, o recém-nomeado secretário de Defesa, e seus eventuais sucessores, será reconstruí-las ao ponto de poderem ser usadas novamente se for necessário.

Acima de tudo, os EUA devem analisar a fundo sua política externa. Que papel a mais poderosa potência deverá jogar na arena internacional, e quais são os limites desse papel? Como o poder americano deve se adaptar a suas possibilidades econômicas finitas - o déficit do balanço de pagamentos americano atual é enorme - e em que circunstâncias ele deveria ser usado? Se o poder americano for usado, quais deveriam ser seus objetivos?

As respostas a essas questões provavelmente não surgirão da noite para o dia; na verdade, talvez tenham de esperar até as eleições presidenciais de 2008 varrerem o que restar da administração Bush para a lata de lixo da história.

Martin van Creveld, professor da Universidade Hebraica em Jerusalém, é considerado um dos mais eminentes especialistas mundiais em história e estratégia militares. Seus livros incluem `The Sword and the Olive: A Critical History of the Israeli Defense Force¿ (1998) e o influente `The Transformation of War¿ (1991). Van Creveld já escreveu, com grande repercussão, que a invasão americana do Iraque foi `a guerra mais estúpida desde que o Imperador Augusto enviou suas legiões à Germânia, no século 9 a. C, e as perdeu¿. Ele escreveu este artigo para o `Global Viewpoint¿