Título: Um enforcamento e um funeral
Autor: Friedman, Thomas
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/01/2007, Internacional, p. A12
Sábado passado foi um dia estranho. Começou com o enforcamento de Saddam Hussein. Quanto mais eu li sobre as manobras apressadas de aparência legal usadas pelos líderes xiitas do Iraque para agilizar o envio de Saddam à forca num feriado muçulmano, o Eid al-Adha, e vi o vídeo mostrando o enforcamento, gravado com um telefone celular, no qual se ouve um guarda provocando Saddam com cantos de ¿Muqtada!Muqtada!¿ - o clérigo xiita cujos esquadrões da morte assassinaram centenas de sunitas - e os insultos proferidos por Saddam, tudo isso me pareceu mais um ritual de vingança tribal e não o auge de um processo constitucional do qual EUA deveriam se orgulhar de ter participado.
Bassam al-Husseini, assessor do primeiro-ministro xiita, disse à BBC que a execução de Saddam foi ¿um presente para o povo iraquiano¿. Muitos sunitas não compartilham essa opinião. Para eles Saddam, um sunita, usou seus últimos instantes para proferir insultos contra ¿os traidores, os americanos, os espiões e os persas¿. ¿Persas¿ é uma referência aos xiitas.
Não espanta o que o editor de assuntos internacionais da BBC, John Simpson, tenha informado de Bagdá: ¿No conjunto, a execução foi um ato horrível e degradante, lembrando mais um enforcamento público no século 18 do que um ato de justiça oficial no século 21. Sob o governo de Saddam Hussein, prisioneiros eram regularmente insultados e maltratados em suas horas derradeiras. O mais perturbador, quando se vê o vídeo da execução de Saddam por crimes exatamente como esses, é que ele faz lembrar muito aquilo que habitualmente acontecia aqui.¿
Mas, como eu disse, sábado foi um dia estranho. Depois de ver o enforcamento de Saddam pela manhã, à noite estava sentado diante de meu computador quando, repentinamente, ouvi trechos da música ¿My country `tis of thee, sweet land of liberty¿ (literalmente: ¿Meu país é de ti, doce pátria da liberdade¿) que vinham da TV na sala ao lado. Quando fui ver do que se tratava, vi o caixão com o corpo do ex-presidente Gerald Ford sendo retirado do avião presidencial , o Air Force One.
Devo reconhecer que senti um aperto na garganta ao presenciar essa cena e ouvir aquela música comovente. A execução de Saddam foi o instantâneo de um país dividido. O funeral de Gerald Ford foi o instantâneo de um país unido - partidários e opositores políticos, juntos, prestando uma homenagem a um presidente circundado por uma guarda de honra representando todas as cores do arco-íris americano e cujo lugar na história foi assegurado por um ato de perdão e de cura nacional. Como é afortunado viver num país onde esta é a regra política, edificada durante gerações.
¿Por causa da nossa unidade básica, podemos nos permitir uma divisão em questões específicas¿, disse Michael Mandelbaum, autor de The Case of Goliath (¿Em defesa de Golias¿, em tradução livre). ¿Democracia significa diferenças e a contestação delas na esfera pública, e só funciona quando existe um acordo básico sobre as questões essenciais; devemos nos sentir felizes por termos uma história democrática e um conjunto de crenças. Essas crenças podem ser importadas por quem as deseja e não as têm, mas não podem ser exportadas. Nós só podemos criar um contexto onde outros gostariam de importá-las.¿
A tosca encenação tribal do enforcamento de Saddam mostra que o Iraque importou pouquíssimos desses valores. Devemos nos responsabilizar por não termos criado a segurança necessária para que esses valores se firmassem. Mas, também, não muitos dos nossos aliados iraquianos se mostraram à altura das circunstâncias. Foram nossos mais próximos parceiros iraquianos que conduziram o enforcamento tribal de Saddam. Precisamos encarar isso.
Saddam merecia morrer cem mortes. Mas imagine se os líderes xiitas do Iraque tivessem surpreendido todo mundo, declarado que as mortes no Iraque já tinham sido suficientes e mudado a pena de Saddam para prisão perpétua - poupando sua vida na esperança de unir o país, em vez de executá-lo e dividindo ainda mais a nação. Não sei se isso teria ajudado, mas sei que os iraquianos raramente nos surpreenderam com gestos de reconciliação - apenas com novas maneiras de se matarem entre si. Agora o presidente Bush deseja enviar mais tropas americanas para Bagdá, numa tentativa de colocar ordem na região. Quando ouvi isso, pensei num casal cuja união nunca foi muito sólida. Então, um dia, um disse para o outro: ¿Olha, vamos ter um filho e assim ficaremos mais unidos.¿ Isso nunca funcionou.
Se não existe uma união na base, um filho não vai ajudar. Se entre as grandes comunidades no Iraque não existir uma disposição básica para compartilhar poder e recursos, o aumento no número de soldados também não ajudará. Reforçar as tropas faz sentido apenas se for para dar mais tempo para o surgimento de tendências positivas que já estariam aparecendo no horizonte. Eu não as vejo. Como mostrou o enforcamento de Saddam, os iraquianos estão fazendo as coisas do seu jeito. Talvez seja, então, o momento de sair do caminho deles.