Título: Morales volta a agredir
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/09/2006, Notas e Informações, p. A3

No final do mês passado, o vice-presidente Alvaro Garcia Linera, da Bolívia, foi a Brasília para tentar destravar as negociações sobre contratos de fornecimento de gás e as condições da encampação das instalações da Petrobrás naquele país. Para desanuviar o ambiente, propôs que as negociações fossem feitas diretamente entre as partes, e não por meio de bombásticas declarações à imprensa - como vinha acontecendo -, e anunciou que quatro ministros bolivianos assumiriam o processo no lugar do ministro dos Hidrocarbonetos, Andrés Soliz Rada, que vê o Brasil e a Petrobrás como inimigos que espoliam a Bolívia.

A trégua durou três semanas. Na segunda-feira, o presidente Evo Morales afirmou, em entrevista a correspondentes estrangeiros, que as negociações para os novos contratos de exploração de petróleo estão atrasadas por causa de uma 'conspiração' contra seu governo, liderada por 'algumas' empresas estrangeiras e pelos adversários internos de seu governo. No dia seguinte, o ministro dos Hidrocarbonetos baixou resolução que, na prática, reduz a Petrobrás a mera prestadora de serviços nas duas refinarias que possui na Bolívia e, se for cumprida ao pé da letra, inviabilizará todas as operações naquele país.

A primeira reação do governo brasileiro foi adequada. Cancelou a viagem que o ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau, e o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, fariam ontem a La Paz. E a Petrobrás, cujas duas refinarias abastecem 90% do mercado boliviano, através de dura nota, condenou a decisão do Ministério de Hidrocarbonetos. 'Do ponto de vista legal, operacional e financeiro, isso inviabiliza totalmente os negócios de refinação da empresa no país', afirma a diretoria da estatal. Mas essa primeira boa impressão foi desfeita depois que o ministro Rondeau revelou que tomou conhecimento da resolução pelos jornalistas e o presidente Lula reiterou que dará a Evo Morales um tratamento benevolente.

O golpe desferido contra a Petrobrás não se limitou a passar para a Yacimientos Petroliferos Fiscales de Bolivia (YPFB) o controle do fluxo financeiro da venda dos produtos refinados. Para o ministro Soliz Rada, a Petrobrás superfaturou preços de produtos não regulados e, com isso, obteve 'rendimentos inadequados e irracionais' de US$ 320 milhões em detrimento do consumidor boliviano. Ora, a Petrobrás adquiriu as refinarias, em 1999, por US$ 100 milhões. Hoje, elas valem algo entre US$ 180 milhões e US$ 250 milhões e têm lucro médio anual de US$ 14 milhões.

O ministro não explica o milagre da multiplicação dos lucros. Mas a sua atitude é facilmente explicada. Acusando a Petrobrás da prática de ilegalidades, ele satisfaz a xenofobia de parte do eleitorado de Evo Morales e, mais importante que isso, arma a arapuca para que a YPFB fique com as refinarias sem gastar um centavo. E com isso se explicaria a fórmula de nacionalização que Evo Morales afirma ser inédita em todo o mundo: 'Não expropria, não indeniza, nem expulsa ninguém.' Faz parte desse golpe a truculência contra executivos das empresas estrangeiras, vários dos quais - inclusive três da Petrobrás - estão com prisão decretada.

Mas a esperteza nos negócios não é mais que um subproduto da esperteza na política. Evo Morales tem enfrentado dificuldades com as quais não contava. O processo de estatização do petróleo e gás não anda porque a YPFB não conta com funcionários especializados e, até a semana passada, não tinha os recursos financeiros necessários para assumir o monopólio do setor. Movimentos sociais que se mobilizaram para apoiar a eleição de Morales, agora fazem greves, manifestações e bloqueios de estradas contra ele. E, dos nove departamentos da Bolívia, seis, justamente os mais ricos do país, não concordam com as grosseiras manobras do partido do presidente para controlar a Assembléia Constituinte que vai 'refundar' a Bolívia. A tal 'conspiração' a que Evo Morales se refere nada mais é que um movimento de governadores para impedir um golpe branco. A Petrobrás entra nisso como um bode expiatório.

Irritado com as cobranças por uma reação mais enérgica à ousadia boliviana, o presidente Lula teria respondido: 'Que querem que eu faça? Que invada a Bolívia?' Não precisa. Basta fazer ver a Evo Morales que o Brasil não tolerará nem a quebra do processo democrático nem o rompimento unilateral de contratos. Essa é a única linguagem que ele entende.