Título: Onde sigilo é impunidade
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2007, Notas e Informações, p. A3

O voto secreto é uma conquista da democracia, pois destina-se, fundamentalmente, a assegurar a liberdade de consciência por meio do isolamento ¿ pelo desconhecimento da opção do votante ¿ das pressões que a possam tolher. Foi assim que, no sistema brasileiro de democracia representativa, se conseguiu (ou, pelo menos, quase se conseguiu) acabar com o ¿voto de cabresto¿ e os currais eleitorais dos coronéis, próprios da República Velha. Nas Casas Legislativas, as votações secretas garantiram a livre manifestação dos parlamentares, evitando que pressões de governos ou de interesses privados manietassem suas consciências. Só que, num processo totalmente distorcido em relação a seus objetivos iniciais, em alguns casos o sistema de votação secreta, no Parlamento, se transformou em um dos mais nocivos instrumentos da impunidade.

A avassaladora crise ética que se abateu sobre o Congresso, levando a que se considere a atual Legislatura uma das piores da história do País, foi sem dúvida a responsável pela identificação de um corporativismo ¿anônimo¿ que acabou anulando quase todo o esforço de moralização do Poder Público, por meio das CPIs que funcionaram no Legislativo federal ¿ para apurar envolvimentos de notórias figuras em cabeludas acusações relacionadas a caixa 2, mensalões (estes, coisas bem diversas), sanguessugas e bandalheiras assemelhadas, em volume jamais visto.

A lamentável situação é que, quanto ao mensalão, dos 11 pedidos de cassação encaminhados pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados ¿ e neste aprovados por voto aberto ¿ o Plenário da Câmara rejeitou 8, em votação secreta. Com esse precedente, depois que a CPI dos Sanguessugas pediu a cassação de 69 deputados (2 renunciaram ao mandato) e 3 senadores, acusados de envolvimento no esquema de venda de ambulâncias superfaturadas a prefeituras, era de se temer que, prevalecendo a votação sigilosa para cassação, mais uma vez haveria absolvições tão escandalosas como as dos mais exuberantemente comprometidos mensaleiros. O óbvio motivo da manutenção dessa grande ¿blindagem¿ corporativa ¿ o voto secreto ¿ era manter ocultas do eleitorado as identidades dos autores dos espúrios votos absolutórios.

Atendendo ao clamor do eleitorado ¿ que em menos de um mês decidirá a sorte da maior parte dos parlamentares ¿, partiram os deputados federais para a sagração da transparência, abolindo a votação secreta por meio de emenda constitucional, aprovada em primeiro turno por 383 votos favoráveis e 4 abstenções.

A idéia original era a de que se eliminassem as votações secretas que dissessem respeito à cassação de parlamentares. Assim, tendo objetivo restrito, a emenda seria mais facilmente aprovada, tanto na Câmara como no Senado, podendo mesmo vigorar antes do término da Legislatura. Ocorre, porém, que na Câmara se decidiu acender uma vela ao eleitorado indignado e outra no altar dos interesses corporativos. E o projeto que foi à votação foi o que propõe a abolição geral do voto secreto, inclusive nos casos das eleições das Mesas da Câmara e Senado, do exame de vetos do Executivo a projetos de lei e de ratificação da nomeação de embaixadores e diretores do Banco Central e das agências reguladoras. E isso o Senado não aprovará. Ou seja, colocou-se o bode na sala, uma vez que a completa extinção do voto secreto, na prática, significa o enfraquecimento da independência parlamentar frente a eventuais pressões do Executivo. Justamente por esse motivo a emenda tem menores condições de ser aprovada no Senado e de vigorar, já a curto prazo.

A transparência das decisões dos parlamentares, nas votações de pedidos de cassação de mandato, corresponde à exigência de ética na política e transformou-se numa exigência incontestável da sociedade brasileira. Mas não faz parte das aspirações dessa mesma sociedade o enfraquecimento do Poder Legislativo, valendo lembrar que a emenda constitucional aprovada pela Câmara também se aplica às Assembléias Legislativas e às Câmaras municipais. A bancada da decência ainda dispõe de tempo exíguo, mas suficiente, para fazer aprovar no que resta dessa legislatura uma emenda que tire o bode da sala, ou seja, garantindo as prerrogativas de independência dos parlamentares, mas expurgando do Legislativo a aberrante sinonímia que confere ao voto secreto o sentido de impunidade.