Título: A política como incômodo e o futuro
Autor: Nogueira, Marco Aurélio
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

Seja quem for o próximo ocupante do Palácio do Planalto e seja qual for a composição do Congresso Nacional a partir de 2007, não é de esperar que a vida política brasileira ingresse numa fase virtuosa no curto prazo. Assim como em boa parte do mundo, a política também parece entre nós destinada a girar em falso, a mostrar pouca eficácia e a produzir mais problemas que soluções, fato suficiente para que seja vista pelos cidadãos como um ônus, um mal necessário. Ela está gravemente posta em questão pela vida e pelas disposições éticas hoje prevalecentes. Por isso, não será uma mera troca de comando ou a renovação dos parlamentares que farão com que volte a ter brilho.

Há vários aspectos a serem considerados nessa discussão. Primeiro: não é a política como um todo que está vazia, sem consensos e com pouca legitimidade. O que está em estado de sofrimento é a política institucionalizada - os sistemas, as regras, a organização da democracia, as leis, os partidos - e mais ainda aquilo que podemos chamar de 'política dos políticos', qual seja, praticada pelos políticos, à moda deles, focada na conquista e no manejo do poder. A política como atividade dos cidadãos - como luta por direitos, como interesse cívico, vontade de participar e interferir na tomada de decisões, como preocupação com a vida comum e a boa sociedade -, essa não padece do mesmo mal, nem se ressente de falta de prestígio, embora esteja despojada de potência e efetividade. É a política dura que está em xeque e nos incomoda.

Incomoda, antes de tudo, por um conflito ético que remonta às cavernas e está hoje exacerbado. A ética comum não consegue entender nem assimilar a ética política, particularmente em sua dimensão moral. Não aceita que os políticos simulem e dissimulem, que mintam, finjam e defendam interesses obscuros, que abusem da pressão e da demagogia, que busquem o poder a qualquer custo, muitas vezes passando por cima das boas maneiras, da inteligência e do interesse público. Hoje, como estão em boa medida 'soltos' da sociedade, os políticos fecham-se em si e se tornam expoentes de uma ética nonsense: por que fazem o que fazem se servem para tão pouca coisa? O cidadão comum fica sem respostas.

Há, depois, um defeito de ordem estrutural. Na sociedade em que estamos passando a viver - movida a velocidade, a informações, a imagens, a reviravoltas surpreendentes, a fluxos pouco controláveis -, as instituições flutuam, sofrem para balizar as condutas individuais, os relacionamentos, a dinâmica econômico-financeira, as relações com a natureza, e assim por diante. Os indivíduos estão obrigados a ser 'soberanos', ainda que não estejam propriamente emancipados. Recebem poucas orientações de sentido provenientes do social, que a eles aparece como palco de um drama sem roteiro. As pessoas precisam e querem se mexer, circular, fazer coisas, dizer o que pensam e batalhar pelo que acham ser certo. Freqüentam sempre mais o ciberespaço, interagem à distância, precisam se expor e decidir. Mesmo que esse 'estilo' de vida inclua proporcionalmente pouca gente, a dinâmica por ele gerada influencia tudo. Sobra menos tempo, menos energia e menos condições materiais para que criem e se cuide de instituições. As pessoas 'escapam' das instituições.

Tudo isso traz muitas vantagens, mas também cria inúmeros problemas.

Não é por outro motivo que as instituições representativas têm menos prestígio que a idéia e as experiências de participação. No mundo social fragmentado, individualizado e meio fora de controle em que se vive, é muito mais lógico participar e defender interesses do que se fazer representar. A vontade de participar - de 'agir', de se 'movimentar' - tem a cara da modernidade turbinada dos dias atuais.

É precisamente por isso que a escolha de bons governantes e de bons parlamentares tem importância estratégica. Se vacilarem nessa área, os cidadãos correrão riscos enormes de ver a cena pública - aquela em que existem como cidadãos - ser desqualificada ainda mais. Se a situação está ruim com os políticos, dá para imaginar como ficaria sem eles, ou com um amontoado bizarro deles.

Devemos torcer e brigar para que a representação melhore, para que o voto seja valorizado, para que os legisladores, os dirigentes e as elites intelectuais abram com seriedade e criatividade a discussão sobre a reforma política, saindo do mantra monótono que nos embala, mas também devemos aprender a viver num mundo de instituições mais leves e menos impositivas. Daqui para a frente, teremos de reconstruir as instituições existentes - do Estado à família e à escola - a partir de critérios mais democráticos, abertos e dinâmicos.

É na estrada da participação que estão as maiores esperanças de recomposição social e recuperação da política. Se a vontade de participar for devidamente politizada - isto é, se a luta em defesa de direitos e a disposição participativa das pessoas forem vinculadas a um desenho de vida coletiva -, isso não somente dará corpo e consistência à democracia, como também 'regenerará' a representação. Teremos de experimentar sucessivas reformas políticas, que ajustem e remodelem as instituições políticas, tornando-as mais coerentes, mais eficazes e mais dialógicas com a vida real do século 21, mas teremos de nos dedicar especialmente a abrir mais espaços para a projeção das pessoas na política. Como fazer isso de modo organizado e produtivo é algo que ainda não se sabe, mas sabemos que será preciso caminhar nessa direção.

Precisamos, em suma, de mais 'política dos cidadãos' e menos 'política dos políticos'. Ou seja, precisamos de políticos e de cidadãos em doses equilibradas, definidas a partir de critérios que façam com que os políticos estejam efetivamente a serviço dos cidadãos e sejam por eles controlados.