Título: As tolices do raciocínio em bloco
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/12/2006, Notas e Informações, p. A3
A reação da esquerda européia à reeleição de Hugo Chávez - de que o editorial Continent of the left do The Guardian, de Londres, parece ser representativo - sugere que a massa de informações que a mídia produz em proporções astronômicas e da qual ela própria se realimenta é insuficiente para clarear os horizontes mentais quando a interpretação dos fatos do mundo é cativa daquilo que no Brasil dos anos 1960 se chamava ¿raciocínio em bloco¿. Na esteira do triunfo do presidente venezuelano, essa incapacidade de ir além das aparências e dos rótulos pré-fabricados na avaliação dos acontecimentos em regiões ¿exóticas¿, como a América Latina, acaba de produzir duas tolices. A primeira, condensada no título do comentário do jornal britânico, é que, até onde a vista alcança, nada detém o avanço da esquerda nesta parte do globo. A segunda, mais tola que a primeira, é a de que o coronel Chávez é um autêntico líder esquerdista.
Nada mais falso. Se por governos de esquerda se entendem aqueles que primam por hostilizar a economia de mercado e fazem da retórica antiamericana a peça de resistência de sua política externa, são antes a exceção do que a regra no hemisfério. O padrão prevalecente é o do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, do uruguaio Tabaré Vasquez, da chilena Michelle Bachelet, do peruano Alan García, todos eles reformistas pragmáticos, cujos partidos, incluído o PT, percorreram a mesma jornada do socialismo europeu rumo à social-democracia mais cor-de-rosa do que rubra. Com outro esquerdista, o equatoriano Rafael Correa, não deverá ser diferente. Sem falar que, há pouco, a centro-direita tornou a vencer as eleições na Colômbia e no México. Felizmente, nem todos os comentaristas britânicos raciocinam em bloco. No Financial Times, o respeitado Richard Lapper assinala que os moderados venceram 7 das 11 últimas eleições latino-americanas.
À parte o argentino Néstor Kirchner, teúdo e manteúdo dos petrodólares chavistas, que não é moderado nem radical, mas idiossincrático e oportunista, restam os casos do sexagenário Daniel Ortega, na Nicarágua, que já não é nem sombra do líder revolucionário que foi, e o de Evo Morales, na Bolívia, onde o que levou um indígena cocalero ao poder, pela primeira vez em 470 anos de supremacia branca, foi exatamente isso: a decisão da oprimida maioria étnica de ascendência pré-colombiana de infligir às elites ocidentalizadas uma desforra histórica. Isso, evidentemente, não o impede de se alinhar ao eixo Caracas-Havana.
Resta Hugo Chávez. Chamá-lo de socialista é perverter o sentido do termo e reinventar o personagem, contra todas as evidências.
O que Chávez realmente é, é uma espécie de Mussolini mameluco, e o chavismo - como concepção política e forma de controle do Estado - é um populismo de extração nacional-socialista, como foi, a seu tempo, o populismo peronista. Nos dois casos, o DNA é inconfundivelmente de direita. ¿Que ninguém tenha medo do socialismo¿, discursou o presidente, depois da vitória. Ninguém que conheça a natureza do chavismo tem medo do socialismo. O que se teme, e muito, é o que ele irá fazer com a democracia em seu país, em nome do socialismo bolivariano, essa confecção destinada a legitimar o seu intento de governar autocraticamente a Venezuela até o fim de seus dias. Essa a principal razão do seu culto ao fidelismo.
Da perspectiva brasileira, há que se temer que o presidente Lula, que hoje o recebe de braços abertos, se compraza em ser um segundo violino da orquestração chavista na cena mundial. Paradoxalmente, a reeleição de Chávez deixa ao alcance de Lula a grande oportunidade de projetar uma liderança contrastante - e autenticamente representativa da América Latina democrática - desprovida de vezos ideológicos.
Joga também a favor disso a sensata decisão de Washington, manifestada pelo subsecretário de Estado para a América Latina, Thomas Shannon, de não aceitar as provocações chavistas. Na segunda-feira, Shannon fez questão de incluir a Venezuela entre os países democráticos, embora uma democracia ¿com muitos desafios, metas e problemas¿, além de salientar que os Estados Unidos não querem uma relação de confronto com a Venezuela, ¿muito ao contrário¿. Ele já tinha falado em manter boas relações com o Equador de Rafael Correa e a Nicarágua de Daniel Ortega. Aja como agir Chávez, Lula deve tirar daí as devidas lições para a diplomacia brasileira.