Título: Saddam não quis clemência
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2007, Internacional, p. A10

Ao saber que a apelação contra sua sentença de morte foi rejeitada, o ex-ditador Saddam Hussein pediu a seus advogados que não pedissem clemência por sua vida às autoridades iraquianas. A revelação é de Rana Hussein, filha de Saddam. Em entrevista em Amã, na Jordânia, onde vive com os quatro filhos, Rana, de 37 anos, expressou raiva, angústia, perda e desesperança ante os eventos que levaram ao enforcamento do pai. ¿Mantive a esperança de que por algum milagre, por algum ato divino no último minuto, não chegaria a isso. Nunca pensei que jamais o veria novamente¿, disse.

Segundo ela, dois membros da equipe de advogados do pai foram convocados por Saddam em sua cela, em Bagdá, dois dias após a confirmação da sentença de morte. Saddam queria passar as últimas instruções à família. No dia seguinte, sexta-feira, 29 de dezembro, os advogados partiram para Amã. Quando ali chegaram, notícias sobre a possibilidade de seu enforcamento iminente começavam a vazar.

De acordo com Rana, seu pai deixou claro aos advogados que não queria nenhuma petição pedindo clemência: ¿Este é o momento que todos esperávamos; o líder deve suportar e sustentar suas responsabilidades e seu destino, e este é o momento de provarmos a todos que fomos realmente os líderes¿, disse Saddam, segundo relato de seus advogados à família.

Rana e sua irmã, Raghad, também mantiveram contato constante com o filho de um dos co-réus junto com Saddam - Awad Hamed al-Bandar, sentenciado à morte pelo papel que teve como presidente do tribunal revolucionário de Saddam -, que estava no Iraque. Ele pediu um encontro com o ex-ditador. Os americanos, que ainda estavam com a guarda de Saddam, disseram que estudariam o caso e o informariam.

Os telefones na residência de Raghad estavam quentes porque advogados de lugares tão distantes como Washington, França, Líbia, Iêmen, Catar e outros debatiam o que mais poderiam fazer para sustar a execução. Mas no fim da tarde as esperanças começaram a se desvanecer e, um a um, eles foram percebendo que era só uma questão de tempo.

Rana perdeu a esperança quando os americanos disseram que a reunião solicitada com Saddam não era mais possível porque ¿o assunto já não está em nossas mãos¿. A família do ex-ditador e sua equipe de defesa acreditaram que ele havia sido entregue ao governo iraquiano muito antes do que foi noticiado. Foi uma longa noite: Rana, inclinada em sua esteira de oração, ainda esperava o milagre que salvaria seu pai. Pouco depois das 5h na Jordânia, notícias sobre a execução de Saddam começaram a aparecer nas telas das televisões.

Os filhos de Saddam, Uday e Qusay estão mortos - baleados por tropas americanas em 2003. O mesmo vale para os genros do ex-ditador, os irmãos Hussein e Saddam Kamel al-Majid - casados com Raghad e Rana, respectivamente. Antes figuras importantes do regime, eles foram mortos em 1996, alegadamente por ordens do sogro. Para Rana, porém, a morte de seu pai foi o golpe mais duro. ¿Minha perda é enorme e nada a substituirá. É maior que a perda de meus dois irmãos, pois ele era minha única esperança e era dele que eu recebia minha força¿, lamentou.

A filha e o filho de Rana, Nabaa e Ahmad, concordam. Eles falam com adoração do avô, ¿baba Saddam¿. Ele havia substituído o pai morto como o homem em suas vidas quando ainda eram muito novos. Para eles, Saddam era um personagem totalmente diferente do homem aviltado em todo o mundo.

A voz de Ahmad tremeu quando ele falou da carta que seu avô lhe enviara da prisão, dizendo-lhe para se esforçar na escola e receber boas notas. O noivo de Nabaa, Ali, sobrinho de Saddam, disse que quando eles eram meninos, Saddam lhes contava histórias de sua vida que ilustravam o significado da traição e os induzia a sempre portarem armas para se protegerem. Ahmad disse que desligou os aparelhos de televisão no sábado para impedir que sua enlutada mãe visse qualquer filmagem da execução.

Por trás da tristeza e do ódio de Rana está uma história complexa de infância feliz, amor e casamento, defecção, morte e vingança, deslocamento, separação e exílio. Rana tinha oito anos quando descobriu que seu pai era um homem poderoso e 15 quando se casou. Aos 26, era mãe de quatro filhos, divorciada e viúva. Aos 33, fugiu da invasão liderada pelos americanos e sua família, antes fortemente unida, agora está morta ou dispersa.

Foi coisa perfeitamente natural perguntar a Rana e a Raghad, a filha mais velha do ex-ditador, como ambas podiam defender o pai sabendo que ele havia sido responsável pela morte de seus maridos. Na metade de 1995, figuras de peso no regime, eles teriam pressionado Saddam a cumprir as resoluções das Nações Unidas para aliviar as sanções internacionais. Os filhos do presidente e seu poderoso primo, Ali Hassan (o Ali ¿Químico¿), teriam se oposto ao plano.

Os irmãos Kamel então fizeram planos para fugir para a Jordânia com suas famílias, só contando para as respectivas esposas na véspera da partida, segundo Rana. Em 8 de agosto de 1995, os dois casais fugiram junto com 30 membros da família al-Majid, incluindo nove netos de Saddam.

A pronta resposta deste foi desacreditar os irmãos soltando uma torrente de informações sobre programas secretos de armas e acusando os genros de escondê-los das inspeções da ONU. Desconcertados, os irmãos não conseguiram convencer nem a CIA (a agência central de inteligência americana)nem os exilados iraquianos de sua boa-fé.

Seis meses depois eles resolveram voltar para casa. Raghad, Rana e seus filhos foram ver Saddam para pedir-lhe perdão e se desculpar pela humilhação que lhe causaram. Foi uma reunião lacrimosa. Saddam as abraçou, segundo Raghad, mas disse que ¿apesar de perdoá-las, não poderia perdoar seus maridos por humilhá-lo e fazê-lo sofrer todos aqueles meses daquela maneira¿. Saddam disse às filhas que a única maneira de absolvê-las aos olhos do povo iraquiano era concordarem com o divórcio.

¿Era uma escolha entre pai e marido, mas nossa religião nos instrui a obedecer a nossos pais antes de tudo¿, disse Rana. Três dias depois da volta, e um dia depois de os papéis de divórcio serem entregues para a assinatura das irmãs, houve um ataque à moradia em Bagdá da família al-Majid, onde seus maridos estavam alojados. Todos na casa foram mortos.

A notícia da morte de seus maridos chegou à casa de sua mãe, onde elas estavam com os filhos. Rana desabou no sofá: ¿Fiquei assim nos sete dias seguintes, incapaz de comer ou beber.¿ As visões de Raghad sobre esse episódio são surpreendentes honestas: ¿Se lhe dissesse que o que aconteceu foi correto ou aceitável, não seria exata. Nossa saída do país daquela maneira(defecção) foi errada, a despeito das razões. Fugir de um problema não era a maneira correta, mas o desfecho da volta foi cem vezes errado.¿

Para Raghad, teria sido possível resolver a situação de maneira diferente da que acabou acontecendo. Mas ela defende o ato final de seu pai contra o marido e o cunhado como o de alguém influenciado por ¿pessoas odiosas que não tinham nenhum amor pela família¿. ¿Isso não é defender ou justificar meu pai e a decisão que ele tomou ou se sentiu obrigado a tomar, na época; mas esta é a verdade¿, diz Raghad.