Título: O Brasil na presidência do Mercosul
Autor: Barbosa, Rubens
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2007, Espaço Aberto, p. A2

O Brasil ocupou no segundo semestre de 2006, sem muito destaque, a presidência do Mercosul, num dos momentos mais delicados do processo de integração sub-regional. Multiplicam-se os descumprimentos do Tratado de Assunção e as disputas entre os países membros: Argentina e Uruguai (instalação de fábricas de papel e celulose); Bolívia e Brasil (desnacionalização das refinarias da Petrobrás e preço do gás natural); Paraguai e Brasil (revisão do Tratado de Itaipu e do preço da energia elétrica); Argentina e Brasil (pendências comerciais discutidas à margem dos mecanismos de defesa comercial previstos no tratado). Cresceu o descontentamento dos países menores (Paraguai e Uruguai) com os parcos resultados econômico-comerciais do processo de integração e reapareceram as ameaças de negociações isoladas com os EUA (Paraguai e Uruguai).

Na presidência brasileira ocorreram alguns fatos significativos, que cabe registrar:

A adesão da Bolívia, imersa em grave crise política e em disputa (amigável) com o governo brasileiro, relacionada com a nacionalização das refinarias da Petrobrás e da fixação do preço de venda do gás natural no mercado brasileiro;

a perspectiva de adesão do Equador depois da eleição presidencial;

a entrada em vigência do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem);

a instalação do Parlamento do Mercosul;

o anúncio de medidas de financiamento e facilidades de comércio do Brasil ao Uruguai, Paraguai e Bolívia.

A presidência brasileira ressaltou as contradições e as ambigüidades que caracterizam hoje o Mercosul. Houve avanços no processo de integração, mais simbólicos do que efetivos, como os referidos acima. Ficamos também sabendo que o guarani se tornou língua oficial do Mercosul. De outra parte, ficou bem clara a falta de liderança do Brasil para conduzir o processo, administrar a agenda da integração e tentar ajudar a superar as disputas internas.

De um ângulo mais geral, a clara prioridade que o governo brasileiro atribui à construção da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa) contrasta com a baixa prioridade, apesar da retórica oficial, no tocante ao Mercosul. Essa percepção é reforçada pela criação de estruturas institucionais na Casa a fim de consolidá-la politicamente, gerando um problema de sobreposição ou duplicação de esforços, e pela adoção de medidas no âmbito bilateral (e não no Mercosul) para tentar avançar, no que for possível, o econômico-comercial, como evidenciado pela decisão de utilizar moeda local, em vez do dólar, no comércio entre o Brasil e a Argentina.

Continuaram grandes as dúvidas sobre o futuro do Mercosul, inclusive em decorrência da crescente complexidade do processo decisório com a rápida expansão do número de membros plenos - com pleno apoio de Brasília - sem negociação prévia, ao contrário do usual nos processos de integração regional. As críticas mais duras ao Mercosul surgiram da recém-incluída Venezuela, cujo presidente, Hugo Chávez, declarou, com desdém, que ¿o Mercosul não existe¿, ¿deve ser enterrado¿ e ¿ necessita de um Viagra político¿.

No encontro presidencial no Rio, dia 18, o Brasil passará a presidência ao Paraguai. Embora a agenda da reunião seja dominada por temas técnicos, é provável que as discussões focalizem os problemas políticos que afloraram nos últimos meses como conseqüência dos desentendimentos e frustrações entre os países membros, sobretudo pela crise entre Argentina e Uruguai.

Tendo sido examinada em dezembro, em nível ministerial, os presidentes poderão discutir a proposta submetida, de maneira formal, pelo chefe de Estado do Uruguai, Tabaré Vásquez, na qual faz, entre outras, duas solicitações a seus colegas:

Flexibilizar a aplicação das regras do Mercosul para as economias menores tanto no cumprimento da TEC (os níveis não são adequados e devem ser revisados) quanto na permissão de negociações bilaterais com terceiros países (no contexto de negociações conjuntas ou de negociações unilaterais);

levar a efeito amplo debate sobre o futuro do Mercosul.

É provável que decisões sejam tomadas visando a acomodar essas reivindicações em razão das percepções nacionais de cada um dos membros e dos problemas políticos criados com as demandas uruguaia e paraguaia.

Em dezembro de 2005 foi criado um grupo de alto nível destinado a propor, até novembro de 2006, as bases para uma reforma institucional do Mercosul, levando em conta a necessidade de um reordenamento orgânico do Tratado de Assunção.

Essas discussões deverão ocorrer no âmbito de um Mercosul ampliado, diferente do original, constituído pelos quatro membros fundadores. Hoje, o Mercosul está integrado por mais um membro pleno em processo de adesão (Venezuela) e por cinco membros associados (Chile, Peru, Colômbia, Bolívia e Equador - os dois últimos estão solicitando adesão como membros plenos ao Mercosul).

O debate sobre os rumos do Mercosul já começou na Argentina, no Paraguai e no Uruguai, mas ainda não chegou ao Brasil. O presidente Lula sinalizou publicamente que o País está disposto a realizar uma ampla discussão sobre os desafios do Mercosul e, em particular, sobre as necessidade especiais das economias menores do bloco. Em seu discurso de posse, Lula ressaltou que ¿o Brasil associa seu destino econômico, político e social ao continente, ao Mercosul e à Casa¿.

Diante disso, torna-se urgente e necessário arejar as discussões e incluir não só os governos, mas também a sociedade civil, os sindicatos, os empresários e o Congresso para se avaliar o real interesse de cada país membro.

Por tudo o que está ocorrendo no processo de integração e pela declarada prioridade que o atual governo lhe atribui, chegou a hora de promover esse amplo debate nacional sobre o Mercosul, seu futuro e a estratégia de negociação externa.