Título: As 'quase' invisíveis sociedades caboclas
Autor: Girardi, Giovana
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/12/2006, Vida&, p. A18

Quando se fala em povos tradicionais da Amazônia, é quase imediato pensar nas populações indígenas como herdeiras e guardiãs da floresta que vem sendo devastada nos últimos 500 anos. Um trio de antropólogos lança agora um novo olhar sobre outra população que, se não tem as mesmas raízes, é tão legítima quanto: as sociedades caboclas. Elas são resultado da miscigenação entre brancos e índios e por muitos anos foram vistas com preconceito, como 'testemunho da influência nociva da civilização'.

A evolução desse povo, que representa 90% da população rural amazônica, foi analisada por mais de 20 anos e é abordada agora no livro Sociedades Caboclas Amazônicas - Modernidade e Invisibilidade, organizado por Cristina Adam, Rui Murrieta e Walter Neves, antropólogos da Universidade de São Paulo (USP). Os três explicam a seguir o que as caracteriza.

Qual é a identidade do caboclo?

Murrieta - O caboclo não é uma entidade regional, mas uma categoria analítica. O termo surgiu com um certo teor de segregação e de preconceito, mas resistiu e hoje na verdade representa o ribeirinho, uma série de segmentos sociais que surgiram a partir das misturas entre as populações, mas que acima de tudo foram forjadas por um processo histórico. A Amazônia e o resto do Brasil tiveram histórias muito distintas. No período colonial, o vice-reinado do Grão Pará tinha vida própria. E ali surgiu um campesinato diferente - que não tinha ligação com o sistema de economia de plantation (caracterizado por monoculturas em latifúndios, como cana-de-açúcar no Nordeste).

Neves - Não é um povo biologicamente definido, mas que tem um estilo de vida comum de subsistência. Só que ao mesmo tempo são flexíveis, e se adaptam a novas ondas de mercado, como ocorreu no período áureo da borracha. Quando o caboclo tem uma possibilidade de entrar em algum tipo de mercado ele se engaja, mas sem tirar o pé de sua tradicional produção de comida básica. Acabou o mercado, ele se recolhe à sua subsistência. Isso dá uma grande autonomia para as famílias. Elas sabem que pelo menos o básico podem garantir com seu sistema de roça. Agora, quando surge uma oportunidade de melhorar a renda, eles rapidamente a agarram.

É daí que surge a idéia de que esses povos são invisíveis?

Murrieta - Por muito tempo, tanto a sociedade quanto a academia negligenciaram essa população porque os caboclos não se encaixam na imagem do 'exótico amazônico' na qual todo mundo estava interessado. O caboclo não é culpado pelo desaparecimento dos índios, mas foi visto assim. Só que eles são seus descendentes e mantêm seu conhecimento tradicional no que se refere à subsistência. O problema é que desde o século 19 o Brasil criou um lugar para o índio e outro para o branco. O índio era o passado idealizado e o branco era o futuro. E quem eram os caboclos? O campesinato indesejável, formado à margem do grande capital. Ele até fazia parte disso, e sofria influências, mas sempre manteve um nível de autonomia que o colocava à margem dos grandes sistemas agrícolas. O caboclo era um meio termo incômodo.

Neves - Além disso, existe a invisibilidade paisagística. Às vezes a gente entra na boca de um rio e fica com a impressão que ninguém vive ali, mas quando adentramos um pouco mais vemos uma casa, a roça. É uma população extremamente dispersa. Como não há grandes aglomerados, é espacialmente invisível.

Mas esse comportamento pode ser visto como uma espécie de involução se comparado com a existência des complexas sociedades ameríndias no período pré-Cabral?

Neves- Pelo contrário, acho que daí os caboclos tiraram dois aprendizados. Notamos que os caboclos são subnutridos e isso se explica, em parte, porque a floresta tem um limite em carboidratos. O cultivo da mandioca, a grande fonte calórica, é muito sujeito a perdas com as enchentes das várzeas. É de se imaginar que sociedades antigas possam ter colapsado numa situação dessas em que milhares teriam ficado sem comida.Talvez os caboclos tenham aprendido que é melhor se dispersar para produzir apenas o suficiente para o grupo familiar. Não ser muito visível também poderia ser interessante num contexto colonial, visto que os primeiros grupos indígenas exterminados foram os maiores e mais visíveis. Hoje a invisibilidade pode até ser revista, quando eles se inserem num mercado, mas não através do adensamento e da aglomeração.

Mas como eles se inserem no esquema de desenvolvimento sustentável, nos projetos de ganhar dinheiro com a floresta em pé?

Cristina - Acho que isso na verdade é mais um ciclo, como foi a borracha, a juta. É mais uma oportunidade de gerar um aumento de renda. Só que ninguém pensa hoje que o desenvolvimento auto-sustentável pode ser socialmente injusto. Pode acabar engessando a população exatamente nas mesmas condições em que ela vive hoje.