Título: Jogo de cena no Rio
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/01/2007, Notas e Informações, p. A3

Movidos de parte a parte por cálculos de conveniência política, o presidente Lula e o novo governador fluminense, Sérgio Cabral Filho, tornaram-se protagonistas de um lamentável espetáculo de exploração do surto de violência que espalhou destruição e morte no Rio de Janeiro, dias antes da virada do ano. Mais uma vez o narcotráfico mostrou que não conhece limites no seu enfrentamento com o poder público e mais uma vez a sociedade brasileira foi tomada de espanto e indignação com as barbaridades que custaram a vida de 12 inocentes (e de 7 suspeitos de envolvimento com as atrocidades).

Não foi, porém, um raio em céu azul, como estão fartas de saber as populações das principais metrópoles do País, expostas às investidas do crime organizado. Quando os atentados ao patrimônio público e particular não provocam vítimas fatais, mal deles se ocupa o noticiário. Mesmo o morticínio da última quinta-feira de 2006 no Rio, em que pese todo o seu horror, empalidece perto das agruras que o PCC impôs aos paulistas entre maio e setembro, com mais de 180 mortos, entre os quais 56 policiais e agentes penitenciários, assassinados, muitos deles, nas suas casas ou bairros, diante de familiares e vizinhos.

O que mudou, a rigor, foram apenas as circunstâncias do calendário político. Era fatal que a posse de Lula e de Cabral, a tão pouca distância da mais recente tragédia carioca, fosse contaminada pela questão que, não de hoje, figura entre as mais agudas inquietações dos brasileiros. A percepção geral, que na esmagadora maioria dos casos corresponde à verdade dos fatos, é da impotência do Estado nacional diante das corporações da droga, com a sua notória capacidade de corromper as polícias, que deveriam desmantelá-las, e servidores do Judiciário, que deveriam punir os seus membros de acordo com a lei penal.

Deve ter sido, portanto, com a intenção de aplacar a opinião pública que o presidente reempossado, falando de improviso no parlatório do Planalto, deu de equiparar as práticas bestiais das facções criminosas a atos de terrorismo, cujos perpetradores precisam ser reprimidos pela ¿mão dura do Estado¿. É evidente que já tarda no Brasil uma lei antiterror, até para que possa cumprir a dezena de convenções internacionais de combate à praga que assinou e ratificou. Mas não será transformando uma crise de segurança pública numa crise de segurança nacional que se conseguirá partir a espinha da delinqüência estruturada.

De seu lado, decerto para mostrar que daqui para a frente tudo será diferente no Rio, mas com total alheamento da realidade, o governador Sérgio Cabral pediu a Brasília o ¿envio imediato¿ ao seu Estado dos 7.600 membros da fosfórica Força Nacional de Segurança Pública - um disparate que o próprio governo federal tratou de desidratar, depois de impensada aceitação inicial. Resolveu-se que só em fevereiro, na melhor das hipóteses, 500 homens da Força serão enviados para auxiliar a polícia fluminense. E é duvidoso que até lá a tropa esteja apta a fazer o que dela espera o açodado governador.

Também para demonstração, Cabral pediu o Exército nas ruas do Rio - no entorno das instalações militares na cidade. No combate à violência urbana, dificilmente pode haver idéia pior do que envolver as Forças Armadas. De mais a mais, por força de lei, para o Exército agir como polícia em algum Estado, mesmo em espaços delimitados de antemão, o governador deve declarar serem insuficientes os meios de que dispõe para controlá-los, o que não passa pela cabeça do recém-empossado titular do Rio. Com a nítida intenção de salvar-lhe a face, recusando o seu pedido, como se o tivesse atendido, Lula resolveu que as Armas ¿intensificarão a atuação na proteção de suas áreas¿ - o que pode significar apenas aumentar o número de sentinelas nos quartéis.

O Planalto também decidiu que as Forças Armadas terão assento no Gabinete Integrado de Segurança Pública do Estado. Não está claro que diferença isso fará nem quais as suas implicações para o papel dos militares. Uma coisa é certa: a luta contra o crime dispensa lances de teatro, ou de crasso oportunismo, capazes, aliás, de detonar um desmoralizador efeito bumerangue. Enfrente-se, antes, a corrupção policial e as milícias de ex-policiais que passaram a vender proteção às favelas cariocas tomadas aos traficantes. E reprima-se o narcotráfico também na intocada ponta do consumo. Já não seria sem tempo.