Título: Exaustão do regime está nas ruas
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/01/2007, Internacional, p. A16

A notícia sobre a recuperação de Fidel Castro adiou provisoriamente um debate inevitável sobre mudanças em Cuba. A pressão por mudanças não se limita a exilados de Miami nem é fruto exclusivo da diplomacia de guerra dos Estados Unidos, mas reflete um prolongado esgotamento do regime.

Em 1959, quando desceu de Sierra Maestra, Fidel Castro dizia que o ditador Fulgêncio Batista transformara Cuba num bordel sob controle da máfia americana. Quase meio século depois, o país possui um bordel a céu aberto, com prostitutas e prostitutos de plantão nas avenidas e esquinas de Havana. A corrupção alojou-se em diversas fatias da máquina estatal. Sem perspectiva, cubanos com diploma universitário assediam turistas que visitam o país em busca de um convite para trabalhar no estrangeiro como empregados domésticos.

Num quadro de imensa dependência externa, a maior fonte de divisas de Cuba hoje é o turismo. O petróleo do venezuelano Hugo Chávez substitui os fornecimentos da antiga União Soviética. Investimentos chineses constroem parques de diversão e garantem linhas de financiamento para a compra de geladeiras e fogões. A falta de comida leva o governo a pedir ajuda externa. O BNDES brasileiro oferece crédito para a compra de biscoitos e outros alimentos produzidos no Brasil.

Entre intelectuais que se definem como ¿revolucionários¿ e engenheiros que ganham a vida como feirantes, a maioria dos cubanos reconhece méritos num regime que garante 12 anos de escola pública a toda criança, possui índices de violência que são quase um sonho e uma saúde pública que funciona - mas consideram cada vez mais difícil aceitar um cotidiano de carências e pobreza.

¿Tenho certeza de que, na hora certa, viveremos um processo semelhante ao ocorrido na União Soviética¿, afirma uma exilada cubana de 40 anos, ex-militante da Juventude Comunista, há dez anos na Espanha, e que, como tantos cubanos, define-se como ¿fidelista, mas não comunista¿. Tradução: admira Fidel (¿ao menos não permitiu que o país ficasse de joelhos¿), mas acha que ele errou ao tentar ¿adaptar o funcionamento da economia às suas idéias políticas. Este é o desastre¿.

Para um veterano das aventuras militares na África nos anos 80, ¿ninguém consegue progredir¿: ¿As pessoas se esforçam para comprar um par de sapatos ou uma calça. A escola continua de graça, mas as famílias precisam comprar uniformes para as crianças. Às vezes, faltam livros. Eu preciso ir a um neurologista. Mas há dois meses não consigo marcar consulta. Muitos de nossos melhores médicos, hoje, nem vivem no país¿, afirma, referindo-se aos milhares de médicos cubanos enviados à Venezuela, Bolívia e outros países.

Embora haja um consenso em torno da queda no padrão do serviço público, a qualidade em muitas áreas segue respeitável. ¿Eles doutrinam os estudantes desde a infância e dão cursos políticos mesmo em aulas avançadas¿, observa uma bolsista estrangeira. ¿Mas na hora de dar a matéria eles são bons. ¿

O regime de Fidel Castro é uma ditadura sem disfarces. Não há necessidade de censurar a imprensa porque todas as publicações são escritas e revisadas pelo Partido Comunista. As livrarias vendem o verdadeiro pensamento único: não abrem espaço a dissidentes de nenhum tipo - nem comunistas. A internet só é aberta para estrangeiros - e é caríssima - e funcionários públicos autorizados. O cubano comum não tem direito a acessá-la. Cidadãos estrangeiros são mantidos sob vigilância. Quem vai visitá-los em casa deve deixar o nome num livro de registros. Se for estrangeiro, escreve o número do passaporte. Se for cubano, a carteira de identidade. Vez por outra, um inspetor confere.

O governo encerrou o ano anunciando um crescimento econômico da ordem de 12,3%. Os números foram engordados artificialmente com gastos de serviço público, que são excluídos dos cálculos convencionais do PIB. Sem truques, o crescimento ficou em torno de 7%, bastante respeitável. A explicação é que o país viveu uma depressão profunda após o colapso soviético e parte de patamares baixos. Em três anos, o turismo triplicou. Dona da maior reserva mundial de níquel, Cuba beneficiou-se da boa fase da economia mundial. Mas a população segue sem o básico e a riqueza chega a poucos.

Carnês de racionamento garantem alimentos a preços irrisórios - mas em quantidade insuficiente. Um filão de pão custa 10 pesos cubanos - numa sociedade onde salários ficam entre 300 e 500 pesos mensais. Uma banana custa 1 peso. Alimento obrigatório da dieta cubana, 250 gramas de feijão preto são vendidos a 12 pesos.

Muitas mercadorias são vendidas em supermercados onde é preciso fazer o pagamento em ¿pesos conversíveis¿, a divisa que os estrangeiros usam para fazer compras no país e todo cidadão cubano pode adquirir. O câmbio é de 25 pesos cubanos para 1 peso conversível. Assim, um litro de leite chega a 5 pesos conversíveis, que equivalem a 30% do salário de boa parte dos trabalhadores. Uma lata de doces em calda, chinesa, custa 12 pesos, ou mais da metade do salário. ¿Aquilo que queremos comprar só é acessível para quem tem divisas¿, diz uma guia de turismo.

Em várias repartições do Estado funciona um sistema de corrupção enraizado. Na construção civil, que precisa de investimentos para reformar favelas de cimento e tijolo em bairros degradados de Havana, o furto organizado de material é uma realidade denunciada e descontrolada. O sistema de transportes é um desastre clínico, com ônibus lerdos e apertados, onde, nos dizeres bem-humorados de uma senhora de Havana, ¿toda viagem parece um filme de sábado à noite: tem violência, tem roubo e tem sexo¿. A causa de boa parte dessas mazelas se encontra no desvio do dinheiro das passagens.

¿Eu vivo bem, já passei férias no exterior, mas milhões de irmãos cubanos precisam melhorar de vida¿, admite um motorista de táxi. Empregados do governo - que também é dono dos automóveis -, muitos taxistas furtam o Estado com um método simples: transportam passageiros sem registrar a corrida nos taxímetros, embolsando o dinheiro sem prestar contas. O truque permite transformar um salário mensal de 200 pesos cubanos, o equivalente a R$ 8 por mês, numa receita de R$ 1,3 mil mensais. ¿Todo mundo quer um dinheiro a mais¿, justifica um taxista de Havana.

Curiosamente, os críticos mais ativos do regime cubano são aqueles que o governo ajudou a educar e preparar - e que hoje se sentem desprezados e injustiçados. O grau de seu descontentamento define a temperatura do país. Dizendo-se admiradora de Che Guevara, uma funcionária de hotel cinco-estrelas não sente o mais leve remorso para vender charutos, perfumes, sabonetes, celulares e outras mercadorias disponíveis na ¿Bursa Negra,¿ nome local de uma economia informal de mercadorias contrabandeadas e mesmo roubadas. Para ela, ¿um povo educado como o nosso não pode aceitar tantas dificuldades como se fosse uma coisa natural. Se fôssemos mais ignorantes, nosso descontentamento seria menor.¿