Título: Crise não muda ritmo do Incor
Autor: Lopes, Adriana Dias
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/01/2007, Vida&, p. A20

Esse foi o primeiro fim de ano sem cesta de Natal para os 3 mil funcionários do Instituto do Coração (Incor), do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Foi também o primeiro com atraso salarial e com espaço recorde na imprensa sobre as dívidas da Fundação Zerbini - de R$ 245 milhões -, instituição que apóia financeiramente o Incor. Mas o assunto crise, que corre solto nos corredores do hospital, não alterou o ritmo e muito menos camuflou o orgulho de quem trabalha no maior centro de cardiologia da América Latina, que na próxima quarta-feira completa 30 anos de existência.

¿O Incor sempre é lembrado pela excelência científica e referência médica no País, mas, sem demagogias, tudo isso só foi conquistado graças ao empenho e à relação que os funcionários têm com o hospital¿, avalia o diretor-executivo David Uip. ¿Isso aqui não pára.¿

As 24 horas do hospital público com maior contingente de pacientes privados do País (20% são de planos de saúde e cerca de 1% paga do próprio bolso o atendimento) têm pelo menos 75 realidades diferentes - número de setores em que o Incor é distribuído, num espaço mais de sete vezes maior que o do Museu de Arte de São Paulo (Masp).

Num dia qualquer, a última quinta-feira, por exemplo, às 8 da manhã, o auxiliar de enfermagem Virgílio Francisco da Costa, de 66 anos, já estava no fim do expediente na UTI coronariana, mas ia ficar mais um pouquinho por ali.

Como faz há 25 anos, chegou pontualmente duas horas antes do horário determinado e nunca faltou. ¿Gosto de entrar e sair daqui com calma, tomar um cafezinho na copa e conversar com as pessoas. Isso aqui é minha vida¿, diz ele.

Às 7 horas da mesma quinta, a alguns metros dali, no setor cirúrgico, o cardiologista pediátrico Miguel Barbero começava uma operação de altíssima complexidade em uma peruana de 11 anos, que havia esperado 6 meses para conseguir lugar no hospital. A menina sofre de uma doença congênita. A operação, prevista para durar quatro horas, levou o dobro disso.

De madrugada, ainda no comecinho daquela quinta-feira, o cirurgião Marcelo Jatene operava um bebê. O tempo que durou a operação foi suficiente para o servente Renivaldo Araújo Ramos, de 26 anos, encher 20 ¿gaiolas¿ de roupas. Há quatro meses Ramos trabalha no serviço de rouparia do hospital, onde dobra, embala e empilha camisolas, aventais, cobertores, lençóis e toalhas dos pacientes e funcionários. Por dia são 40, cada uma com 200 quilos.

Na emergência do Sistema Único de Saúde (SUS), o cardiologista de plantão Rogério Bicudo Ramos se desdobrava para trabalhar no lugar lotado de pacientes à espera de um leito - a emergência do SUS chega a receber 300 pessoas por dia -, sem jamais falar mal do café morno e fraco de térmica, um dos poucos direitos dos funcionários de lá.

No andar térreo, cinco horas depois de Ramos ter terminado o turno com a 40ª gaiola, a nutricionista Cláudia Mattos batalhava para abastecer o restaurante interno do hospital. Os carros-chefes, feijoada e carne vermelha.

A cada ano, o Incor recebe 2,5 milhões de pessoas para exames, 250 mil para consultas e 5 mil para cirurgias. Muitos desses pacientes são celebridades - o hospital tem uma lista de 120 políticos que passam por lá com freqüência, incluindo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que faz check-up uma vez por ano. Roberto Kalil Filho, cardiologista e pesquisador do Incor, e Uip, infectologista, são médicos da maioria deles.

CIRURGIAS HISTÓRICAS

Muitas operações entraram na história do hospital nos últimos 30 anos. Entre elas o primeiro transplante de fígado bem-sucedido no País, em 1985, liderado pelo cirurgião Silvano Raia.

Outra, mais recente, foi feita no ano passado em Arthur Blauth Santos, na época com 4 meses. Ele veio do Rio para ser operado de uma doença que atrapalhava o fluxo sanguíneo no organismo. A cirurgia era uma tentativa de fazer com que o bebê resistisse mais tempo na espera por um coração.

Arthur morreu meses depois, mas acabou virando símbolo de uma das maiores lutas da instituição, que é estimular a doação de órgãos - em quatro anos, o hospital teve 50 crianças com diagnóstico de transplante cardíaco.

O primeiro ventrículo artificial (dispositivo que permite a melhora da circulação corpórea) da América Latina foi criado no instituto em 1993. A equipe de pesquisadores da Divisão de Bioengenharia também criou bombas para auxílio da circulação do sangue e próteses para substituição de válvulas.

O Incor foi o primeiro a fazer angioplastia (cirurgia usada para desentupir as coronárias) depois de um enfarte. Várias técnicas cirúrgicas hoje adotadas em hospitais de todo o mundo foram criadas ali. Entre elas, a realizada para corrigir, em recém-nascidos, a localização das artérias aorta e pulmonar.

Cirurgias complicadas, pacientes e médicos ilustres, nada disso assusta a enfermeira Kátia de Bona, há 20 anos no Incor. ¿A maior lição que vou levar daqui eu aprendi na marra: todo mundo é idêntico num leito de hospital. E aqui, todos os leitos são idênticos.¿