Título: A execução de Saddam Hussein
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/01/2007, Notas e Informações, p. A3

Saddam Hussein foi um ditador brutal e sanguinário. Assumiu o poder no Iraque na esteira de um golpe militar e lá se manteve graças a uma combinação de corrupção e violência. No Iraque, dizia-se, não havia oposição: os críticos do regime estavam mortos ou exilados e o ditador não perdoava nem mesmo pessoas de sua própria família. Em 1980, invadiu o Irã, iniciando uma guerra que duraria oito anos e custaria aos dois países mais de 1,5 milhão de mortos. Dez anos depois, invadiu o Kuwait, com o objetivo de anexar aquele país. Expulso do Kuwait pelas forças de uma coalizão liderada pelos EUA e composta por todos os países muçulmanos da região, Saddam Hussein partiu para um acerto de contas contra as populações curdas do norte e os xiitas do sul, que haviam se rebelado contra seu regime. A repressão foi feroz e resultou em milhares de mortos.

Apeado do poder por uma coalizão novamente liderada pelos EUA, Saddam Hussein foi preso em condições humilhantes em dezembro de 2003. Mas Saddam não foi julgado e condenado por um tribunal especial pelos crimes mais graves e espetaculosos que cometeu, como os ataques com armas químicas contra os curdos, que resultaram em 100 mil mortos. As autoridades iraquianas julgaram-no pelo assassinato de 148 adultos e crianças em represália a um atentado praticado contra Saddam em 1982.

Em outras circunstâncias, a execução de um ditador como Saddam Hussein teria um efeito político decisivo sobre o Iraque. Mas o país está profundamente dividido entre facções sunitas e xiitas que lutam entre si e contra os ocupantes estrangeiros do país. Assim, a execução de Saddam não é um acontecimento que aplaque os ódios clânicos e religiosos ou que aumente a violência contra a população. No dia em que foi anunciado o enforcamento do ditador, houve no Iraque quatro atentados a bomba, com 72 mortes. Mas engana-se quem acha que esse número representa uma escalada de violência em resposta à execução. Lá, a média diária é de cem mortes por atos terroristas e ações de esquadrões da morte.

Há uma guerra civil em curso no Iraque e Saddam Hussein já não era protagonista deste episódio, embora tenha sido ele o principal responsável pela criação das condições que levaram o Iraque ao desastre. A sua execução, portanto, não implicará necessariamente reconciliação das facções ou agravamento do conflito.

Pode abrir, no entanto, uma janela por onde entre ao menos um sopro de racionalidade e bom senso num conflito marcado pela selvageria. O primeiro-ministro xiita Nuri al-Malik, por exemplo, pediu à minoria sunita que reconsiderem seus métodos e se unam ao processo político. E o partido Baath, de Saddam, por sua vez, conclamou os iraquianos a ¿atacar sem piedade¿ os ocupantes americanos e o Irã, mas sem afundar o país numa guerra civil.

Algumas pessoas - entre elas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva - estão na dúvida sobre se a execução de Saddam Hussein foi um ato de justiça ou se foi um ato de vingança. Para as famílias das vítimas de Saddam, houve justiça e vingança. Para as pessoas que acreditam que o mundo não pode ser governado pela lei da selva, que as populações têm direito à vida e a liberdades básicas, e que abominam os crimes contra a humanidade, a execução foi um ato de justiça, sem dúvida alguma. Desfecho diferente equivaleria a coonestar ou mesmo a recompensar um abominável regime totalitário.

Mas não é isso o que pensa o governo brasileiro, pela nota oficial emitida pelo Itamaraty e pelas declarações do presidente Lula. Depois de afirmar que a execução de Saddam não resolverá o problema do Iraque, o presidente Lula fez uma clara alusão aos EUA: ¿Eu penso que os que estão ocupando o Iraque têm de ter consciência de que o Iraque só irá encontrar a paz quando as divergências internas forem resolvidas por eles mesmos.¿ Ora, as forças de ocupação são, hoje, o menor problema do Iraque, onde funciona um governo eleito livremente. Há uma guerra civil e de religião lá, estimulada por outros agentes externos: a Al-Qaeda, o Irã e a Síria - mas sobre isso o presidente não se pronuncia.