Título: Legado de ex-ditador está mais vivo que nunca
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/01/2007, Internacional, p. A14
Saddam Hussein está morto, mas seu legado está mais vivo do que nunca. Quando os iraquianos, em todo o país, souberam que o ex-ditador fora enforcado, as amargas lembranças do seu governo definiram suas respostas.
Para os xiitas, oprimidos por um longo tempo, foi um momento de grande alívio. ¿Este capítulo da história foi encerrado¿, disse à TV Mouwaffak al-Rubaie, conselheiro de Segurança Nacional do Iraque. ¿Vamos esquecer e conviver mutuamente.¿
Os sunitas mostram descrença. Depois de três anos sofrendo uma opressora violência e abusos pelas forças de segurança do governo xiita, a confiança desapareceu completamente e poucos se sentem representados pelo governo. Muitos, na verdade, estão temerosos.
¿Não faço parte do mundo deles¿, disse Yusra Abdul Aziz, que trabalha como professor no bairro árabe sunita de Mansour. ¿Eles não estão falando sobre o Iraque. Estão falando sobre si.¿
Essas reações mostraram até que ponto os iraquianos se dividiram nos três anos após captura de Saddam Hussein. E embora ele tenha perdido importância na vida cotidiana do Iraque, sob muitos aspectos o país ainda vive o legado que ele construiu.
O novo Iraque parece capaz de cometer ainda mais abusos do que aqueles sofridos por tanto tempo, perpetuando-os com uma brutalidade opressiva. As pessoas desaparecem na noite. Corpos perfurados surgem aos montes. As forças de segurança agem também como esquadrões da morte.
Saddam era tão brutal que manteve o país firmemente unido. Além do controle militar, havia uma sutil ligação social: os iraquianos de todas as seitas gostavam de odiar Saddam unidos. Agora que ele desapareceu, os xiitas temem zombar dele diante de sunitas e os sunitas têm medo de ser acusados pelos crimes que ele cometeu.
Ahmed Hillu, alfaiate de 32 anos, cujos ternos estão pendurados em sua pequena loja no bairro xiita de Cidade Sadr, recorda ter visto às escondidas, numa área vazia a nordeste de Bagdá, membros da polícia de elite de Saddam assassinarem grandes grupos de opositores xiitas. Ele tinha 6 anos na época. Essa área, uma antiga barragem chamada Qasr Attash, hoje é um dos locais mais usados pelas milícias xiitas para desfazer-se de corpos.
Saddam não poupou praticamente ninguém em seus métodos assassinos, mas os xiitas foram especialmente sacrificados. E o tratamento abusivo sistemático parece ter deixado cicatrizes que se mantêm até hoje, inspirando os novos líderes no uso de métodos duros de conduzir as coisas.
¿Quando colocaram a corda em seu pescoço, será que ele se lembrou de quantas pessoas inocentes assassinou?¿, perguntou Husam Abdul Hussein Jasim, dono de uma relojoaria em Cidade Sadr. ¿Ele é como um demônio.¿
Embora seu opressor tenha sido enforcado, os xiitas no nordeste de Bagdá não festejaram. As ruas não tinham a agitação habitual. Até o escritório do clérigo Muqtada al-Sadr ficou fechado. Uma reação totalmente diferente de quando Saddam foi sentenciado à morte, em novembro, quando o veredicto foi recebido com festa.
Para alguns iraquianos, as humilhações foram suficientes para sentirem que a justiça havia sido feita. Smeisam, professor na área de maioria xiita de Binouk, disse que, para sua mãe, cujos pais foram assassinados pelo regime de Saddam, o momento da vingança já tinha chegado quando ela viu a cena de soldados americanos tirando o ex-ditador do buraco onde estava escondido perto de Tikrit, em dezembro de 2003.
Mukaram, seu marido, não se sensibilizou com a morte do ex-ditador. ¿Na verdade, não senti nada¿, disse. ¿Ele executou tantas pessoas. Agora é sua vez. Para mim Saddam morreu quando foi preso, portanto não era importante.¿
A execução de Saddam aconteceu nas primeira horas de um dia que, para os árabes sunitas, marca o início do feriado de Eid al-Adha (os xiitas começaram a celebração ontem). Se os xiitas viram o enforcamento de Saddam como um presente, muitos sunitas estavam revoltados com o fato de a execução ter sido marcada para um feriado de perdão, o que parece ser uma violação da lei iraquiana. ¿Estou furioso¿, disse Abdul Aziz. ¿Não foi a ocasião adequada. Eu lhe garanto, aqueles que estão achando que foi o momento oportuno e houve um julgamento justo não são iraquianos.¿
O curdos, por sua vez, ficaram contrariados com o enforcamento rápido. Agora Saddam não será julgado por outros importantes casos, especialmente sobre a matança com armas químicas de 180 mil curdos em Anfal e Halabja, em 1987-88.