Título: A tragédia do Rio de Janeiro
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/12/2006, Notas e Informações, p. A3
O ano de 2006 começou com uma onda de violência deflagrada no Estado de São Paulo pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e termina com 31 ataques a ônibus, delegacias, guaritas e carros de polícia promovidos pelo crime organizado na cidade do Rio de Janeiro. A tragédia resultou em 18 mortos e a promessa das facções criminosas de promover um ¿Rio de sangue¿ nos próximos dias.
Embora não haja uma ligação direta entre os acontecimentos de São Paulo e Rio de Janeiro, eles dão a medida da crise da segurança e da incapacidade do Estado de manter a ordem. Se há uma lição a se extrair desses episódios, que têm na banalização da selvageria seu denominador comum, é que eles nos mostram quem hoje manda efetivamente na sociedade. As autoridades prisionais fluminenses tinham informações sobre os ataques, mas o governo foi incapaz de adotar medidas preventivas.
Dada a persistência das causas estruturais que levaram o Rio de Janeiro a retroceder ao estado da natureza, o que se tem hoje na antiga capital federal é uma disputa aberta pelo controle de espaços urbanos entre facções criminosas e milícias formadas por policiais da ativa e aposentados que, aproveitando o vácuo do poder público, passaram a controlar favelas para extorquir seus moradores. Não há mocinhos nessa ordem paralela, em cujo âmbito a única lei é a do mais forte. Com uma polícia minada pela corrupção, governos ineptos, leis penais anacrônicas e tribunais lentos, o Estado perdeu a condição não só de impedir essa guerra, mas até de garantir a incolumidade de seus próprios dirigentes, como foi evidenciado pelo assalto sofrido pela presidente do Supremo Tribunal Federal há três semanas, na Linha Vermelha.
Com simplismo sociológico ou rigor analítico, muito já se falou a respeito dos fatores responsáveis pela crise da segurança pública. Mas que providências tomar para tentar levar o Estado civil a se sobrepor ao estado da natureza no Rio de Janeiro? A resposta mais óbvia é não repetir a sucessão de erros cometidos nos últimos anos, em matéria de política de segurança pública, nos níveis federal e estadual.
O retrato mais ilustrativo do descalabro que tomou conta do Rio de Janeiro, após oito anos de governo do casal Garotinho, foi a recente prisão de 78 policiais militares, acusados de fazer parte do esquema de extorsão liderado pelo ex-chefe da polícia civil Álvaro Lins. O casal Garotinho, contudo, não é o único culpado. No âmbito federal, o presidente Lula, se deu o devido valor ao componente social da violência, contentou-se com medidas assistencialistas e declarações demagógicas sobre um suposto ¿choque de inclusão¿, mas não tomou as medidas necessárias para consolidar o Sistema Nacional de Segurança Pública. Desde então, o governo vem tratando a violência criminal com o imediatismo das situações de emergência, enquanto os indicadores sociais vêm caindo em níveis preocupantes.
Além disso, por não saber estabelecer prioridades, também na área da segurança pública o governo cortou investimentos em áreas estratégicas, reduziu sem critérios despesas de custeio e promoveu o contingenciamento generalizado de verbas orçamentárias. Em 2005, foram investidos só 5,5% dos R$ 413 milhões previstos no Orçamento da União para o Fundo Nacional de Segurança Pública, enquanto o Plano Nacional de Segurança utilizou 28,7% da verba prevista.
No plano legislativo, em vez de iniciar a modernização da legislação penal, cujo principal código foi editado em 1940, quando eram outras as condições socioeconômicas do País, o Congresso continuou aprovando leis de ocasião, concebidas às pressas para tentar aplacar a indignação da sociedade. E, no plano judicial, o STF ¿reinterpretou¿ a Lei dos Crimes Hediondos, concedendo o benefício da progressão da pena a traficantes e homicidas, o que permitiu a liberação de milhares de delinqüentes de alta periculosidade, agravando o problema da violência nas ruas.
A tragédia do Rio de Janeiro, ocorrida às vésperas da posse dos novos governadores e do início do segundo mandato do presidente Lula, adverte as autoridades de que já não é possível adiar a implementação do Sistema Único de Segurança Nacional, a reformulação do Fundo Nacional de Segurança Pública, a gestão articulada das polícias estaduais e federal e a revisão da legislação penal. Esse é o desafio que os novos dirigentes têm de enfrentar, para que a sociedade deixe de ser refém da criminalidade.