Título: Entulho maior do Congresso
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/01/2007, Notas e Informações, p. A3

Não é de hoje que o Congresso padece de notória trava institucional, que se constitui numa verdadeira contradição em relação às atribuições específicas do Poder de Estado ao qual cabe a função de legislar. Aqui nos referimos ao mecanismo da Medida Provisória (MP), originalmente qualificado na Constituição como dispositivo destinado a permitir atuação tempestiva do governo em situações (e só nelas) de urgência e relevância. Se não dá para dissociar tal mecanismo da herança autoritária dos decretos-leis, com os quais o Executivo usurpava atribuições do Legislativo, impondo uma clara capitis diminutio aos representantes do povo no Congresso Nacional, sempre se argumentou, com certa razão, que também no pleno regime democrático há situações em que os governos necessitam de respaldo legal imediato para enfrentar emergências.

Não se trata de considerar a MP um instrumento espúrio em si, mas tão-só pelo seu uso abusivo - e é, justamente, com extremo abuso que tem sido ele utilizado pelos governos, aí não ficando o presidente Lula a dever nada a seus antecessores. Muito pelo contrário. Medidas Provisórias foram baixadas a torto e a direito, à média de uma por semana, no primeiro governo Lula. Mas é justo registrar que a tentativa que se fez, durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique (em setembro de 2001) de restringir o abuso de MPs foi um verdadeiro tiro saído pela culatra, que gerou ainda piores distorções. Antes as MPs tinham prazo de vigência de 30 dias, podendo ser reeditadas - sem limite de número de vezes - por mais 30 dias. Com a mudança, ficaram com prazo de vigência de 60 dias, podendo ser reeditadas - apenas uma vez - por igual período. Mas a partir do 45º dia a MP não votada tranca as pautas de votações na Câmara dos Deputados ou no Senado.

Essa possibilidade de trancamento de pauta prejudicou a produtividade das Casas Legislativas federais em índices, de fato, impressionantes. Entre 2003 e 2006, de cada dez sessões de votação, em seis nenhuma matéria legislativa foi votada, por estar a pauta obstruída por MPs não votadas. Em 2005, 75,84% das sessões ficaram obstruídas. Em 2006, foram 65,71% as sessões obstruídas. Entre 13 de fevereiro e 12 de julho, por exemplo, apenas dez sessões deliberativas foram realizadas. E, nos dias 25 e 26 de abril, a pauta da Câmara dos Deputados ficou bloqueada por nada menos que sete Medidas Provisórias acumuladas. Vê-se, assim, que o fato de a legislatura que se encerra ser considerada a pior da história da República não se deve apenas aos escândalos do mensalão, dos sanguessugas e outros que atingiram tantos representantes do povo no Congresso. Deve-se, também, ao brutal emperramento da produção legislativa, motivado pelas famigeradas MPs.

Outra aleivosa distorção, provocada pela mudança feita no mecanismo das MPs, tem sido sua utilização, pelo governo, como instrumento de obstrução de propostas indesejáveis. Não querendo que entre em pauta de votação projetos que não sejam de seu agrado, ou que contrariem seus interesses políticos, muitas vezes o governo lança mão de MPs, sabendo que travarão as pautas. Mas o governo também pode ser vítima desse trancamento. Agora, tratando-se de matéria orçamentária a estratégia do governo de usar MPs - por exemplo, abrindo créditos extraordinários para os Ministérios - torna inócua qualquer discussão parlamentar sobre a questão, pois com o dinheiro já gasto o que sobra para resolver? Só em dezembro, cinco MPs abriram créditos extraordinários no valor de R$ 11,4 bilhões.

Vozes oposicionistas têm voltado a enfatizar a necessidade de se criar fortes restrições ao uso abusivo de Medidas Provisórias. O problema é que essa é uma discussão velha demais - como a da reforma política - para que desperte alguma esperança de mudança.

O fato é que, se o Executivo abusa da edição de Medidas Provisórias, as mesas das Casas do Congresso, submissas ao presidente da República, não defendem as prerrogativas do Legislativo com o único instrumento de que dispõem: arquivar as MPs abusivas, por falta dos requisitos de urgência e relevância.