Título: Crise do Incor pode ser a ponta do iceberg
Autor: Oliveira Junior, José Reinaldo Nogueira de
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/01/2007, Espaço Aberto, p. A2

As dificuldades financeiras enfrentadas pelo Instituto do Coração (Incor) ganharam o noticiário e espantaram a população. Maior instituição pública de cardiologia da América Latina e referência em pesquisas e tratamento de doenças do coração, o hospital sempre se demonstrou uma ilha de prosperidade em meio à penúria vivida pelo restante da rede pública. Precavidos, os presidentes da República se dirigem ao Incor para cuidar da saúde. E estão certos. Parece, no entanto, que a prestigiada instituição experimenta, agora, um problema comum a toda a rede de atendimento público: a falta de dinheiro.

Sabe-se que as causas são complexas e se arrastam há algum tempo. Algumas são particulares, mas existe uma fundamental que deve ser mais bem analisada, pois vai além dos muros do Hospital das Clínicas e da Fundação Zerbini. Uma das principais reclamações da administração do Incor é que o SUS repassa apenas 20% dos gastos que o hospital tem com procedimentos de alta complexidade em pacientes da rede pública. A queixa é totalmente justificável e, provavelmente, esse desequilíbrio foi um duro golpe na contabilidade da instituição.

A inadimplência do SUS com os hospitais é coisa antiga e essa mesma defasagem da tabela se aplica a todas as Santas Casas e a todos os hospitais beneficentes do País. Essa distorção explica muita coisa sobre as dificuldades generalizadas do setor.

As instituições beneficentes realizam cerca de 150 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano para a rede pública. Aproximadamente 40% de todas as internações hospitalares demandadas pelo SUS são feitas nessas entidades. Também é preciso ressaltar que em muitas cidades do Brasil as Santas Casas são a única alternativa de assistência médica para os pacientes do SUS. No interior do Estado de São Paulo essa situação ocorre em 56% dos municípios.

Do total da fatura pelos serviços prestados, considerando procedimentos de todos os graus de complexidade, o governo paga apenas 60%. Alguns exemplos práticos: no mundo real, um parto normal custa em média R$ 800, mas a calculadora do Ministério da Saúde determina um pagamento de R$ 317,39. Uma diária de UTI não sai por menos de R$ 870, porém, o SUS avalia que é possível oferecer esse tratamento por R$ 213,71.

Essa situação se repete ano após ano, gerando um déficit contínuo e crescente que os hospitais não podem mais suportar. Sem a mesma comoção causada pelas dificuldades do Incor, muitas instituições beneficentes diminuíram os atendimentos aos pacientes da rede pública e algumas chegaram a fechar as portas. Infelizmente, parece que a situação vai avançar até um nível insustentável e atingir a maioria das entidades. Já são generalizados os problemas de dívidas com fornecedores, Previdência e até funcionários.

Nesse caso, o iminente colapso da rede beneficente será um problema muito maior que a bancarrota do Incor, ao menos para o grande número de brasileiros que dependem do Estado para receber assistência médica. Se o governo alega falta de recursos para corrigir a tabela do SUS, nem em séculos será capaz de construir uma estrutura física e profissional igual à que empresta das Santas Casas e dos hospitais beneficentes. Lembrem-se que estamos falando de 150 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano em 2.100 entidades espalhadas pelo Brasil. Muitas delas são centros de excelência em pesquisas e servem como referência do que há de mais avançado em procedimentos médicos. Atualmente, no que se refere aos serviços prestados ao SUS, toda essa megaestrutura pode ser comparada a um castelo de cartas.

Este cenário está sendo apresentado, há tempos, por entidades e profissionais de saúde. Até agora foi uma pregação no deserto. Durante a campanha eleitoral não houve uma abordagem clara sobre a questão da saúde, muito menos em relação à correção da tabela do SUS. Nenhum dos candidatos foi capaz de apresentar propostas objetivas para a solução deste ou de qualquer outro problema. O que se ouviu foram apenas intenções genéricas que não se configuram como compromissos assumidos.

Por outro lado, a movimentação pós-eleição em Brasília dispensa bastante atenção à saúde. Entre os vencedores e novos aliados, o ministério, recheado de verbas e com enorme visibilidade política, é motivo de guerra nos bastidores. Resta saber qual a estratégia (se é que existe alguma) dos ávidos aspirantes a ministro para melhorar a assistência médica oferecida à população. Do lado de cá do balcão a expectativa é grande.

Seja quem for o escolhido, é recomendável, como primeiro ato, acelerar a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 e determinar o que é ou não é gasto com saúde. A demora dessa providência está fazendo com que recursos para salvar vidas sejam utilizados para fins estranhos à saúde, minando ainda mais o já dilapidado orçamento. A partir disso, deve haver uma correção decente da tabela do SUS. Essa briga com a matemática não é mais possível e o perdedor será a população. Sem essas duas iniciativas não será viável a construção de uma política pública de saúde sólida. Essas ações devem ser os pilares da revitalização da assistência médica no SUS.

Apesar das dificuldades, as entidades beneficentes realizam milhares de atendimentos ambulatoriais diários a pacientes da rede pública. Os dirigentes dessas instituições se consideram capazes de oferecer uma colaboração ainda maior para oferecer o atendimento digno e de qualidade a que o brasileiro tem direito. Para isso esperam equilíbrio na contrapartida.