Título: Filosofia e sociologia no ensino médio
Autor: Ghiraldelli Jr, Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/01/2007, Espaço Aberto, p. A2

A escola do ensino médio não vai bem. Os professores ganham mal e são ameaçados física e moralmente por gangues e ¿alunos¿. Quando você escuta alguém do governo negando isso, pergunte a tal pessoa se, após os quatro anos da administração Lula, ela faria voltar seus filhos para a escola pública, se é que um dia eles estudaram lá. Todos sabem que quem pode pagar por alguma escola particular não põe seus filhos na escola pública.

O presidente Lula diz que a educação será prioridade no seu segundo mandato. Mas ¿prioridade para educação¿ se tornou verborragia de político. Que governante diria o contrário? E, no caso da administração Lula, há uma agravante quanto a isso: é difícil ver na história do Ministério da Educação (MEC) uma equipe tão pobre em idéias e tão amadora quanto essa que passou e que parece que vai ficar. E o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb)? Ele tem tudo para ser um tiro pela culatra. Comentei neste espaço, no mês passado, que não teremos garantia de que o dinheiro será bem gasto.

Se já não bastasse tudo isso, agora alguns Estados - com São Paulo à frente - resolveram desconsiderar a única medida inteligente que foi possível se ver na área educacional, durante a administração Lula, que foi a volta da filosofia e da sociologia ao ensino médio. Este jornal denunciou o caso: o Conselho Estadual de Educação paulista elaborou uma indicação confusa sobre a inclusão de filosofia e sociologia no ensino (Indicação nº 62/2006, aprovada em 20/9/2006). O relator do Conselho Estadual de Educação (CEE) sobre o assunto, sem nenhum fundamento e também sem melindre, simplesmente desconsiderou todo o debate nacional de mais de duas décadas sobre a importância da inclusão de disciplinas humanísticas no ensino médio e ainda jogou a questão para 2008. E mais: desconsiderou também a legislação maior, que veio do Conselho Nacional de Educação, que falava claramente da obrigatoriedade da volta de tais disciplinas. São Paulo, que havia sido pioneiro quanto a isso, agora está na retaguarda.

Esse episódio de São Paulo poderia ser visto por alguns como uma questão isolada. Pois poderíamos pensar: ¿É coisa regional.¿ Mas são de ¿coisas regionais¿ que o Brasil é construído, ou melhor, destruído.

Além disso, o que está em jogo com o parecer do CEE paulista não é somente a questão do retorno ou não de duas disciplinas dentro de um quadro caótico. O que está em jogo é algo muito mais importante. É a capacidade das escolas de ensino médio de conseguirem - ainda que em tese - oferecer aos jovens a oportunidade de terem contato com uma parte da cultura da qual nenhum povo desenvolvido abriu mão. E nenhuma outra disciplina cumpre as funções da filosofia e da sociologia quanto ao que elas podem oferecer aos nossos adolescentes.

A disciplina português pode levar alguém a ler Platão e Aristóteles, mas isso ocorrerá somente se houver também o estudo das literaturas brasileira e portuguesa. As disciplinas história e geografia podem dizer muito sobre a Grécia Antiga, berço de nossa cultura, mas não cabe a elas guiar o aluno à leitura de A República, de Platão. Assim, a filosofia e a sociologia são necessárias. É função das disciplinas filosofia e sociologia esse papel. E nenhum jovem pode chegar ao vestibular sem ter lido ao menos a Alegoria da Caverna, de Platão. Pois um país onde um jovem entra numa universidade boa, estatal ou particular, sem ter tido contato com a Alegoria da Caverna é um país de terceira classe. Não é uma nação de verdade. A Alegoria da Caverna está para as humanidades, assim como a ¿regra de três¿ está para as ciências matemáticas. Não podemos imaginar um jovem de 18 anos, numa sala de uma universidade, incapaz de fazer uma ¿regra de três¿, do mesmo modo que não podemos acreditar que alguém tenha chegado a essa idade, após ter vivido dentro de uma escola durante mais de 11 anos, sem nunca ter ouvido falar algo sobre a Alegoria da Caverna. Ora, esse jovem existe, tanto em relação a um conteúdo como quanto ao outro, mas, em tese, ele não deveria existir. Ele pode existir por deficiência prática de nosso ensino, mas não pode existir já no ponto de partida, por obra da letra da lei. A letra da lei não pode proibir Platão, tirando-o do currículo, do mesmo modo que não pode eliminar dos conteúdos a ¿regra de três¿. Se no passado fizemos isso, erramos. Temos que parar de errar.

Um último recado, agora, para os professores de filosofia e sociologia.

Superamos a discussão sobre a transversalidade. Ninguém que passou por algum estudo sério na área de Humanidades vai dizer que a filosofia e a sociologia devem ser ¿transversais¿ no currículo do ensino médio. Superamos também a discussão sobre o conteúdo; não temos mais de decidir se deveríamos falar sobre a ¿vida cotidiana¿ ou sobre a ¿leitura dos clássicos¿. Hoje sabemos que o melhor é a articulação entre as duas formas. Então, quando tudo nesse âmbito havia dado bons passos e, enfim, São Paulo já até havia feito um concurso de ingresso de professores nessas disciplinas humanísticas, veio esse parecer descabelado do CEE. Vamos reativar forças para mudar isso. Temos de acreditar, até que mais uma vez os fatos nos provem o contrário, que o novo governo de São Paulo terá um melhor diálogo com o CEE e vai empurrá-lo no sentido de ser uma casa mais qualificada, técnica e teoricamente. O CEE vai poder provar que está mais qualificado quando der um parecer claro e nítido pela volta imediata da filosofia e da sociologia à escola dos adolescentes.