Título: Presidente investe na imagem de novo 'pai dos pobres'
Autor: Manzano Filho, Gabriel
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/12/2006, Nacional, p. A12

Às vésperas de assumir seu segundo mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um líder inteiramente à vontade no poder, dono de forte carisma e de uma força eleitoral que paralisam as oposições - mas essas virtudes se embaralham com um perfil político impreciso, sempre adaptável às platéias de cada momento. Como não tem um projeto nacional de longo prazo nem idéia de como construí-lo, lança-se à tarefa mais singela de ser um novo 'pai dos pobres'. Para tanto, faz um incessante esforço de colar sua imagem à do patrono dessa causa, o ex-presidente Getúlio Vargas, o primeiro grande político a trazer as classes humildes para a cena política brasileira.

Um momento de ouro dessa estratégia de Lula foi sua pose com capacete de operário e as mãos sujas de óleo, ao inaugurar a plataforma P-50 da Petrobrás, em abril passado, repetindo o mesmíssimo ritual praticado por Getúlio em 1953, quando o petróleo foi descoberto na Bahia. No dia a dia, Lula também fala de um País dividido entre os pobres (que ele protege) e os ricos que os exploram. Cada vez que quer alfinetar 'as elites', ele critica duramente os liberais que, em 1954, pressionaram Getúlio de tal forma que o levaram ao suicídio. Até o seu recente refrão eleitoral ('Deixa o homem trabalhar') foi copiado do jingle de campanha de Getúlio em 1950: 'O retrato do velhinho faz a gente trabalhar'.

As técnicas de exercício do poder também os aproximam - afinal, são ambos centralizadores e autoritários. Como Getúlio, Lula sempre fala direto com 'o povo brasileiro', por cima dos canais institucionais, e seu discurso exalta um vago nacionalismo econômico, misturados a vivas ao orgulho nacional, bem ao estilo de Vargas nos seus discursos de 1º de Maio. Getúlio, para seus partidários, era o 'Gegê'. E Lula chegou à Presidência também com um apelido fácil, de duas sílabas.

Getúlio criou dois partidos, o PSD para representar os empresários e o PTB para abrigar as reivindicações dos trabalhadores. Ignorava um e outro, sumariamente, em suas articulações. Lula criou o PT, acomodando nele uma militância fiel e uma corte submissa, da qual vai se livrando à medida do necessário. Getúlio controlou com mão de ferro as lideranças sindicais e Lula traz na rédea curta a CUT e os movimentos sociais.

Um exame mais atento da história, no entanto, revela que as semelhanças não vão além do estilo e dos truques do poder. A primeira e acachapante diferença, ressaltam os historiadores José Murilo de Carvalho e Marco Antonio Villa, é que Getúlio tinha um projeto nacional e sabia como implantá-lo. Para eles, Lula nem de longe se iguala a seu inspirador na formidável tarefa de modernizar o Estado, conduzir o País para novos rumos ou superar um modelo político exaurido, como o Brasil de hoje ou o Brasil agrário dos anos 30.

'Lula não tem uma obra econômica para mostrar, embora seja, como Getúlio, muito carismático', lembra Maria Celina d' Araújo, cientista política e pesquisadora sênior da Fundação Getúlio Vargas. 'Getúlio tinha, e não era pequena.' Em 15 anos de ditadura e outros 3 e meio como presidente, 'ele mudou a cara do País, criou uma nação industrial, as leis trabalhistas', acrescenta ela. 'Lula demonstra, aliás, uma fragilidade, que é a de ficar querendo se comparar com os outros'.

Marco Antonio Villa desfia outras diferenças: as alianças de Getúlio 'tinham como base um projeto de longo alcance para o País', enquanto Lula 'busca alianças para governar no varejo, sem visão de futuro'. É um líder que ' ainda mantém a ótica sindical, da pequena vitória econômica. Em outras palavras, não tem perspectiva histórica.'

Olhando de perto, mesmo as diferenças pessoais são marcantes, adverte José Murilo. Getúlio,lembra, gostava de fazer política e adorava o poder: 'Ademais, era um psicólogo nato, mestre na manipulação de vaidades alheias e no disfarce das próprias intenções'. Enquanto isso, 'Lula não aparenta gostar do exercício do poder e parece apreciar muito mais as luzes da ribalta do poder e o calor das multidões, que conhece desde os tempos dos comícios do ABC'. Para ele, Lula é, antes, 'um símbolo político, um carismático', e não 'um operador da política'. Ele 'se perde na ausência de alguém que, a seu lado, operacionalize o carisma'.

Villa não tem dúvidas: 'No futuro, Lula vai ser lembrado pelo governo opaco, como uma espécie de Dutra da esquerda, mesmo que insista em dizer que não é de esquerda'. Villa identifica outro elo a ligar os dois processos: 'Se o peleguismo se desenvolveu no primeiro governo Vargas, no governo Lula ele se consagrou, pois juntou o dirigente pelego e um poder financeiro nunca visto'. Os mecanismos sindicais, prossegue, são alimentados pelos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, enquanto os movimentos sociais 'se tornam correias de transmissão do Estado petista'.