Título: Do sonho de liderar os árabes ao império da delação e do terror
Autor: Barella, Eduardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/12/2006, Internacional, p. A15

Saddam Hussein passou a maior parte de seus 69 anos acalentando o sonho de tornar-se o maior líder do mundo árabe desde Nabucodonosor - o rei da Babilônia que, em 598 a.C., invadiu a Israel bíblica e escravizou os judeus. Jamais chegou perto disso.

Sem o carisma de um Gamal Abdel Nasser, o líder egípcio (1954-1970) que impulsionou o nacionalismo árabe que varreu a região nas décadas de 60 e 70, e sem uma causa como a que ajudou a moldar o palestino Yasser Arafat como líder de massas, o máximo que Saddam conseguiu foi inscrever seu nome na história como o ditador árabe mais truculento de seu tempo.

Neste aspecto, é preciso reconhecer, Saddam foi competente. Criou no Iraque um aparato repressivo sofisticado, que foi aperfeiçoando ao longo dos 23 anos em que permaneceu no poder. Ele buscou inspiração na organização e nos métodos da NKVD, a polícia política criada nos anos 30 pelo ditador soviético Josef Stalin - o grande ídolo de Saddam.

Na época mais dura do regime, após a Guerra do Golfo, a repressão empregava 10% da população. Cerca de 500 mil pessoas atuavam em 12 órgãos diferentes, distribuídos pela máquina estatal, Forças Armadas e Partido Baath. Todos eram encarregados de vigiar uns aos outros. Só na segurança pessoal do ditador eram 32 mil agentes. Outros 2 milhões de iraquianos faziam parte de uma rede de informantes remunerados, com metas de delações a cumprir.

Saddam já demonstrava essa obsessão de vigiar de perto os adversários 15 anos antes de tomar o poder, em 1964, quando foi nomeado chefe dos órgãos de inteligência do Baath. Nessa época, ele já era um militante profissional e tinha como padrinho político um dos líderes do partido, Ahmad Hasan al-Bakr, primo distante que assumiria o poder, em 1968, num golpe.

Sua ascensão no governo foi rápida. Saddam ainda aproveitou os nove anos em que ocupou a vice-presidência, período em que agia como eminência parda do regime, para moldar o Estado policial que instalaria no Iraque.

A nova era começou oficialmente em 16 de julho de 1979, quando Saddam comandou uma reunião de emergência do gabinete que ele próprio havia convocado. Nela, denunciou a descoberta de um complô envolvendo parte da liderança do partido, com apoio da Síria, para derrubar o governo.

A lista trazia 60 'traidores', incluindo cinco ministros. Guardas retiraram do auditório, algemados, cada um dos citados. A platéia, atônita, levou alguns minutos antes de perceber que um golpe havia ocorrido. Dias depois, Saddam obrigou os ministros remanescentes a integrar o pelotão de fuzilamento que executou os 'traidores'. O primo Al-Bakr, chefe de Estado, acabou renunciando por 'motivos de saúde'.

O regime de terror institucionalizado em seguida baseava-se no binômio vigilância-repressão. A tortura e perseguição não eram usadas apenas contra opositores - toda população acabava envolvida nesta atmosfera de ameaça. Com isso, o ditador fez do medo um fator de estabilidade do regime. Mobilizou parte da máquina estatal para bisbilhotar a vida dos iraquianos nos locais de trabalho, nas escolas e até em festas de família.

A delação não era apenas estimulada com prêmios em dinheiro, era cobrada dos cidadãos. Os convocados para interrogatório deviam fazer alguma revelação, mesmo que inventada, sobre algum conhecido. Tudo era anotado e incluído em extensos relatórios organizados pelos órgãos de segurança. Parte deste material, cerca de 10 milhões de páginas de documentos, foi apreendido em 1991 por rebeldes curdos.

Depois da invasão americana, em 2003, milhares de iraquianos puderam denunciar como funcionavam os aparatos de segurança. A tortura sempre precedia o interrogatório, e não o inverso - como ocorre em qualquer ditadura. Os métodos mais comuns incluíam choques elétricos, espancamentos e queimaduras. Mas o regime também recorria a banhos de ácido, que começavam pelos pés e seguiam até os joelhos, e amputação de membros, entre outras atrocidades.

Nos últimos anos, o regime especializou-se na intimidação sexual. Para obter uma confissão, agentes seqüestravam mãe, mulher ou filhas de um detento e as estupravam diante de seus olhos. O aparato repressivo criou até um cargo, o 'violador da honra', para realizar o serviço. A execução de um dissidente era de uma frieza burocrática. O corpo da vítima era colocado num caixão lacrado e entregue ao chefe da família, que deveria enterrá-lo no mesmo dia e ainda pagar pelo funeral. Organizações de direitos humanos calculam que entre 200 mil e 300 mil iraquianos tenham morrido nos porões do regime.

Com essa estratégia, a ditadura eliminou qualquer vestígio de oposição organizada no país.

Saddam também recorreu aos laços de confiança da sociedade tribal iraquiana para preencher os cargos no governo. Os parentes tinham direito a regalias, mas eram punidos se decepcionassem o ditador. Pelo menos 51 deles foram executados, acusados de traição. O caso mais célebre é o dos genros (e irmãos) Hussein e Saddam Kamel, casados com Raghad e Rana, filhas de Saddam. Eles fugiram para a Jordânia em 1995, levando com eles as mulheres e os segredos do programa nuclear iraquiano. Convencidos por Saddam, decidiram voltar para o Iraque. Dias após o desembarque, os genros foram chacinados com o pai, um irmão, uma irmã e dois sobrinhos.

Sua obsessão pela segurança, aliado à sede em saquear o Tesouro iraquiano na fase final do regime, comprovou o fiasco de seus planos de se tornar um líder popular no mundo árabe comparável a Nabucodonosor. Seria mesmo impossível. Como estadista ou estrategista militar, Saddam foi um desastre. Mergulhou o Iraque em duas guerras inúteis, contra Irã e Kuwait, que deixaram meio milhão de iraquianos mortos e arrasaram a economia de um país rico e moderno. Megalômano, sua intenção era abocanhar poços de petróleo dos vizinhos e, com isso, ter poder de barganha na cotação do preço mundial do produto.

Fracassou nos dois objetivos, e ainda amargou 12 anos de sanções econômicas impostas pela ONU após a Guerra do Golfo, em 1991, por recusar-se a entregar seu arsenal de armas de destruição em massa que, no fim, não serviu para nada - nem para mantê-lo no poder, tampouco para torná-lo popular em seu próprio país. A imagem de sua captura, em 2005, marcada pelo olhar assustado ao ser localizado escondido num buraco, antecipou o fim patético do ditador.