Título: No Brasil, uma tributação das Arábias
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/01/2007, Espaço Aberto, p. A2

Em 2005, Abdallah S. Jum¿ah, presidente da Saudi Aramco, da Arábia Saudita, a maior companhia petrolífera do mundo, visitou a Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), onde proferiu palestra sobre o futuro da energia mundial (*). Trazido por Paulo Atallah, ex-presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, trocou conversas e cartões com diretores e professores da Faap, que depois passaram a receber a revista Saudi Aramco World, de altíssima qualidade editorial, voltada para a difusão das culturas, história e geografia dos mundos árabe e muçulmano.

Para este economista, foi particularmente interessante o artigo de capa do nº 5 de 2006, sobre a pessoa e a obra de Ibn Khaldun, que viveu no século 14 e é muito conhecido naqueles mundos como historiador e por outras contribuições que alcançaram a política, a sociologia e a economia.

Neste caso, Ibn Khaldun foi precursor de uma proposição conhecida como Curva de Laffer, formulada por Arthur Laffer. Este argumenta que, se a alíquota do Imposto de Renda fosse zero, o governo obviamente não arrecadaria nada com esse imposto; mas, se a alíquota fosse de 100%, o governo também nada arrecadaria, pois os contribuintes não se disporiam a trabalhar nessas condições. Entre esses dois limites haveria uma curva ligando a arrecadação ao valor da alíquota, de início uma relação positiva. Mas a partir de um ponto a arrecadação cairia com o aumento da alíquota, com aquela atingindo seu máximo nesse ponto. Segue-se também que, se uma economia estivesse além dele, reduções da alíquota trariam mais, e não menos arrecadação. A proposição cabe também a impostos em geral.

Mas é precisamente isso que disse Ibn Kahldun há mais de seis séculos. Traduzindo: ¿Nas primeiras fases do Estado, os impostos são baixos nas suas alíquotas, mas colhem grande arrecadação; nas fases mais avançadas, as alíquotas aumentam enquanto a arrecadação cai¿... E mais: ¿... onde impostos e taxas são baixos, os indivíduos são encorajados a se engajar ativamente nos negócios; o empreendedorismo se desenvolve, pois os homens de negócios sentem que vale a pena trabalhar como tais, dada a pequena parcela de seus lucros que entregam como tributos. E à medida que os negócios prosperam, o número de impostos aumenta e o total da arrecadação sobe. Entretanto, os governos tornam-se progressivamente mais extravagantes e começam a aumentar os impostos. Esses aumentos crescem com a proliferação de hábitos suntuosos no Estado, e o conseqüente aumento de necessidades e gastos públicos, até que a tributação afeta os cidadãos e deprime seus ganhos. As pessoas acostumam-se com esse alto nível de tributação, pois os aumentos vieram gradualmente, sem que se percebesse exatamente quem aumentou os impostos antigos ou impôs os novos. Mas o efeito tributação sobre os negócios se faz sentir. Assim, os que atuam neles logo são desencorajados pela comparação dos seus lucros com o ônus dos impostos, e do que produzem relativamente aos lucros líquidos. Conseqüentemente a produção cai e com ela o produto da tributação. Os governantes podem, equivocadamente, tentar remediar essa queda ampliando as alíquotas tributárias; com isso, impostos e taxas alcançam um estágio em que não há lucro para os homens de negócios, devido aos altos custos de produção, alta carga tributária e lucros líquidos inadequados. Esse processo pode prosseguir até que a produção começa a cair devido ao desespero dessas pessoas, com efeitos sobre a população...¿

A expressão ¿das Arábias¿ se refere a terras exóticas, fantásticas, lugares indeterminados, com gente e/ou coisas incomuns, extraordinárias. Por extensão, cabe a algo incomum, extraordinário ou surpreendente. Assim, pode-se dizer que em vários aspectos o Brasil é um país das Arábias, em particular sua carga tributária, na qual é de longe o campeão mundial para a renda per capita que apresenta.

Mas em que ponto nosso país estaria na Curva de Laffer, ou melhor, de Ibn Khaldun? A arrecadação de impostos continua subindo em termos absolutos e relativamente ao PIB, seja porque houve aumento de alíquotas e novos impostos ou por conta de aprimoramentos da administração tributária, que ampliam as alíquotas efetivamente cobradas.

Mas uma análise dessa extraordinária carga tributária não se pode limitar a uma relação envolvendo duas variáveis, a taxa dos impostos e o valor da arrecadação. É preciso ir além e, nessa linha, envolver pelo menos duas outras variáveis: o efeito da tributação sobre os investimentos privados em formação de capital, implícito nas considerações de Ibn Khaldun, e o que faz o governo com o dinheiro que arrecada, que nem esse autor nem Laffer levaram em conta.

Isto posto, minha intuição é de que o nível de tributação no Brasil já passou do ponto em que gera mais receita para o governo, no sentido de que uma tributação menor estimularia os investimentos privados, o PIB e a arrecadação tributária, mesmo com redução de impostos. Esse efeito seria ainda maior se o governo também gastasse mais com investimentos do tipo citado, novamente com impacto positivo sobre o PIB, e sobre a arrecadação futura.

A seguir do jeito que está, o Brasil continuará também das Arábias pelo insólito e fraquíssimo crescimento econômico.

P. S.: A Saudi Aramco World diz ser ¿distribuída gratuitamente, a pedido, a um limitado número de leitores interessados¿. Pode-se pedi-la escrevendo para a revista, c/o Circulation Department, P.O. Box 469008, Escondido, CA 92046-9008, EUA. Boa sorte!

(*) O texto que reproduz essa palestra foi publicado na Revista de Economia e Relações Internacionais, da Faap, v. 8, nº 5 (janeiro, 2006).