Título: As ameaças que vêm do mundo invisível
Autor: Novaes, Washington
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/01/2007, Espaço Aberto, p. A2

Umas poucas semanas antes de deixar a secretaria-geral da ONU, Kofi Annan - sempre atento a novas e graves questões no mundo moderno - alertou para os ¿perigos potenciais do rápido crescimento da indústria da biotecnologia¿ destinada a combater o bioterrorismo e propôs a criação de regras preventivas em escala internacional. Referia-se ele a possíveis ¿resultados catastróficos¿ de recentes avanços da biotecnologia caírem ¿em mãos erradas¿, principalmente na manipulação genética e nas pesquisas com vírus. Segundo Annan, o potencial de graves males acidentais ou intencionais ¿cresce exponencialmente¿. Propôs, por isso, instalar um fórum internacional de discussões sobre esse tema, aí incluído o ¿terrorismo biológico¿, já que os tratados internacionais a esse respeito são insuficientes, enquanto as legislações nacionais são dispersas e ineficazes. Esse fórum deveria conduzir a um sistema internacional de proteção contra tais riscos.

Embora pareçam temas ainda distantes do nosso pequeno mundo, na verdade são questões que começam a provocar um debate internacional muito forte e relevante. Também há poucas semanas, por exemplo, a revista New Scientist (7/10/2006), em editorial, afirmou que os programas de combate ao bioterrorismo, embora já tenham absorvido US$ 44 bilhões só nos Estados Unidos em cinco anos, não apenas estão longe de haver construído um sistema eficaz de defesa contra ataques desse tipo, como não conseguem enfrentar adequadamente outros riscos à vida dos cidadãos.

Diz a revista que, passados cinco anos dos atentados que provocaram a morte de cinco pessoas e graves infecções em outras 17 com antraz colocado em cartas enviadas pelo correio, o norte-americano FBI não descobriu nenhum culpado. E os pesados investimentos em projetos de defesa contra o bioterrorismo não só continuam ineficazes, como não afastam riscos de produzir resultados indesejados - pandemias provocadas por vírus que escapem ao controle dos pesquisadores e que podem espalhar-se pelo mudo, ou por genes envolvidos nas mesmas pesquisas.

Mesmo os programas de estocagem de vacinas contra bioarmas (antraz, varíola, botulismo) - nos quais já foram aplicados US$ 5,6 bilhões - e de produção de novos medicamentos teriam falhas graves. Especialistas consultados pela publicação dizem que seria mais eficiente e mais barato, além de envolver menos riscos, produzir medicamentos de amplo espectro, mais baratos e de menor risco para o usuário.

Outro problema estaria na distribuição a tempo dos medicamentos, que teria de envolver, numa emergência nos Estados Unidos, cerca de 3 mil instituições dos Estados e cidades. O episódio do furacão Katrina mostrou a ineficácia desses sistemas, o que indicaria a necessidade de vacinação prévia, e não depois de instalada a emergência.

Não bastasse tudo isso, os laboratórios produtores ainda relutam em participar de qualquer programa, por temerem ser processados e condenados a pagar vultosas indenizações financeiras em caso de efeitos colaterais produzidos pelos medicamentos. Tenta-se afastar o problema com emenda que tramita no Congresso, que exige, nesses casos, prova de negligência deliberada do fabricante. Outros laboratórios não querem arcar com os custos de manter estoques elevados dos medicamentos - o que invalidaria uma estratégia de defesa em massa da população.

O capítulo dos riscos nas pesquisas é ainda mais complexo. A revista menciona, por exemplo, a possibilidade de transformar um roedor inofensivo num portador de patógenos mortais, aumentar o potencial de toxinas do botulismo, transferir de um patógeno para outro genes que fortaleçam vírus contra o sistema imunológico humano. Fora a possibilidade de as informações obtidas em laboratórios de pesquisa vazarem para bioterroristas.

Chega-se, assim, a uma situação complicada. Não se descobriu até hoje nada sobre a autoria dos atentados efetivos; gastaram-se US$ 44 bilhões, sem aumentar a segurança efetiva contra novos ataques; e se aumentaram os riscos com os próprios programas e pesquisas. Ao mesmo tempo, dizem os especialistas, deixou-se de investir o necessário na proteção da sociedade contra riscos reais já presentes, como o de pandemias do tipo da gripe aviária (que só não tem até aqui proporções calamitosas graças ao esforço isolado da Organização Mundial de Saúde).

Tudo muito complicado. E a isso se adicionam as novas preocupações com eventuais riscos envolvidos na nanotecnologia, as técnicas utilizadas para manipular a matéria na escala de átomos e moléculas (um nano é a bilionésima parte de um metro; um fio de cabelo tem 80 mil nanômetros), na definição do especialista Paulo R. Martins. Pode haver - diz ele - impactos ainda não conhecidos no meio ambiente, na saúde humana, na agricultura, na produção de alimentos, na sociedade em geral, já que não se tem experiência na manipulação, não há regulamentação sobre a segurança, podem-se ultrapassar barreiras que precisariam ser preservadas (pele, células, cercas) e ainda se enfrenta o risco de auto-replicação descontrolada de materiais. Seria indispensável, portanto, debater essas questões e criar uma regulamentação.

São, tanto no âmbito do bioterrorismo como no da nanotecnologia, novos problemas, que exigem da sociedade - e da ciência - novos posicionamentos. Para não correr riscos inimagináveis. Não se trata de posturas anticiência. Trata-se de respeitar o princípio da precaução e não correr riscos desnecessários.