Título: Efeito da crônica impunidade
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/01/2007, Notas e Informações, p. A3

Tudo levava a crer que a explosão de escândalos envolvendo parlamentares federais em irregularidades e crimes eleitorais, tendo por base principal o uso em campanha do chamado caixa 2 - ¿recursos não contabilizados¿, segundo o cínico eufemismo que tanto se ouviu nos últimos tempos -, tivesse o condão de, se não impedir, pelo menos inibir, nas últimas eleições, a velha prática, tão deletéria para o processo de escolha de legisladores e governantes, ínsita ao sistema de democracia representativa. Era de se esperar que os doadores de recursos para campanhas eleitorais temessem a péssima repercussão e mesmo as conseqüências judiciais da oferta de dinheiro para candidatos, fora das estritas normas e dos limites impostos pela legislação atinente à matéria. Como se explica, então, a surpreendente descoberta, do Ministério Público Federal (MPF), de que o financiamento ilegal foi utilizado em larga escala, em São Paulo, na última campanha eleitoral?

¿Chegamos a resultados surpreendentes, não imaginávamos que fôssemos encontrar irregularidades desse porte. Tudo indica que o caixa 2 continua sendo usado por muitos candidatos¿, disse o procurador regional eleitoral Mario Luiz Bonsaglia, que comanda a apuração. Com base em resultados parciais da investigação, o MPF, na mais ampla devassa que já realizou no âmbito eleitoral, acionou a Receita Federal para rastrear balanços contábeis e fiscais de pessoas físicas e jurídicas suspeitas de violar as regras eleitorais. Entre outros descalabros, descobriu que pessoas físicas contribuíram para campanhas com valores superiores ao da própria renda bruta auferida em todo o ano anterior, enquanto pessoas jurídicas doavam um total de recursos muito maior do que o faturamento bruto declarado - o que constitui indício inequívoco de dinheiro de origem ilícita, ou de caixa 2 ou de recibo fraudado.

Também o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) - órgão, aliás, nem sempre suficientemente utilizado na apuração dos escândalos torrenciais que envolvem movimentação irregular de recursos via sistema financeiro - agora foi devidamente mobilizado na investigação. A Procuradoria Regional Eleitoral enviou ao Coaf a relação de 100 doadores sob suspeita - número que aumentou, no curso das apurações -, ao mesmo tempo que requereu, judicialmente, a quebra do sigilo financeiro e fiscal dos doadores. Por outro lado, segundo o procurador eleitoral Bonsaglia, há pelo menos três casos em que os candidatos eleitos - e todos os suspeitos, a propósito, estão eleitos - ¿tinham plena consciência¿ das irregularidades.

Convencidos de que a conduta dos doadores irregulares caracteriza também a prática de crimes, Bonsaglia e sua equipe estão enviando cópias de todos os procedimentos à Justiça Federal e à Procuradoria da República, para providências de âmbito penal. Trata-se de uma operação sistemática, tendo por baliza os limites de doações estabelecidos na Lei Eleitoral: as pessoas físicas estão autorizadas a contribuir com no máximo 10% dos seus rendimentos brutos e as empresas podem doar até 2% do faturamento bruto declarado no ano anterior - no caso, 2005. Os procuradores acharam dezenas de casos em que os valores doados foram muito superiores ao teto, o que implica multas que vão de 5 a 10 vezes o valor das diferenças apuradas. Há, por exemplo, o caso de uma pessoa física que doou R$ 56.017,20 acima do limite, o que resultou no pedido judicial de aplicação de multa de R$ 560.170,00. Outro caso é de empresa que doou R$ 4,8 milhões acima do teto - e o MP pretende que seja punida com multa de R$ 24 milhões a R$ 48 milhões.

Quanto aos 19 deputados estaduais e federais, eleitos ou reeleitos por São Paulo, que estão sob suspeita de uso de caixa 2 ou outras irregularidades, a Procuradoria Regional Eleitoral já ingressou com recursos que visam à cassação da diplomação e ações de impugnação de mandato. Voltemos, então, à indagação: com tudo o que já abalou o cenário político brasileiro, como se explica que tais práticas espúrias perdurem? A resposta é simples. Como (quase) tudo só resultou numa imensa pizza, eis aí o efeito da crônica impunidade.