Título: 'Socialismo ou morte' não muda vida da classe média venezuelana
Autor: Leite, Paulo Moreira
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2007, Internacional, p. A16

O presidente Hugo Chávez anunciou a chegada do socialismo à Venezuela, mas o trânsito continua infernal em Caracas. No El Tijanero, uma das melhores casas de carne do país, a picanha argentina ainda é servida no ponto certo e a carta de vinhos contém boas opções. O sorvete italiano da 4D continua cremoso e, na livraria Tecni Ciencia, os clientes tradicionais se encontram no final da tarde para folhear os últimos lançamentos e fazer comentários em voz baixa.

¿Nenhuma idéia de comunismo resiste a dez minutos do consumismo que temos neste país¿, afirma o médico Nelson Hamana, um cinquentão bonachão de modos afáveis, à espera de que sua mulher saia de uma loja de lingerie no Sambil, gigantesco centro de compras de Caracas, com uma oferta de produtos e grifes que supera muitos shopping centers das grandes cidades brasileiras. Hamana jamais votou em Chávez (¿ele prega o ódio¿) e admite que se o presidente fizer tudo o que prometeu na posse ¿o país poderá enfrentar um período de violência¿. Mas Hamana acredita que ¿ninguém faz uma revolução e continua bailando¿. E ¿Chávez está no baile há oito anos¿, acrescenta, referindo-se à retórica do presidente, capaz de apresentar-se como campeão dos fracos e oprimidos e, simultaneamente, criar uma petro-prosperidade no país.

Não se trata de uma visão isolada. A denúncia do ¿socialismo ou morte¿ ocupa a agenda da oposição, sem tribuna no país depois que decidiu boicotar a maioria das eleições de 2005 para cá e acabou de mãos vazias, sem cadeira na Assembléia Nacional nem na maioria das administrações estaduais e muncipais. Mas a boa saúde da economia venezuelana parece confirmar a idéia de que as grandes mudanças políticas só ocorrem quando ¿os de baixo não querem viver como antes e os de cima não podem viver como antes¿.

Nos últimos três anos, o PIB do país cresceu 10%, em média. A construção civil explodiu, os financiamentos de casa própria cresceram mais de 220% em relação ao mesmo período anterior, há empresas estrangeiras que recolhem na Venezuela um faturamento que não tiram no Brasil nem na Argentina. É comum encontrar, no centro de Caracas, cartazes com ofertas de emprego para novatos e profissionais experientes, homens, mulheres, o que for. Conforme dados oficiais, o crescimento beneficiou especialmente aquela massa da população que vive abaixo da linha de pobreza. Eles eram 55% em 1998. Tornaram-se 39,7% em 2006.

Já os 20% mais endinheirados perderam quase 10% de sua parcela na renda nacional. Em 1998 eles ficavam com 53,4%. Agora, 49,8%. Mas, num ambiente de crescimento acelerado, também sobraram benefícios no topo da pirâmide. As vendas de carros importados cravaram um recorde histórico em 2006, por exemplo.

Muitas pessoas de classe média reclamam que Chávez não está preparado para governar o país e até que fala palavrões demais. Reclamam de muitas de suas brigas, seja com o secretário-geral da Organização de Estados Americanos ou com um arcebispo que adora fazer críticas ao governo. Também se fala de corrupção, praga que mesmo aliados de Chávez admitem, com a ressalva de que ¿também ocorria nos governos anteriores¿. Referindo-se à emissora RCTV, que perderá a licença de funcionar quando encerrar-se o prazo de sua concessão, as pessoas dizem que Chávez ¿quer ser um ditador e por isso mandou fechar um canal de televisão que diz a verdade¿, como afirma a estudante de comunicações María Angélica Althearthua Castro, de 21 anos.

Vendedor numa grande loja de roupas de Caracas, Miguel Antonio Salazar admite que teve maior facilidade para entrar na Faculdade de Direito da Universidade Central da Venezuela, a melhor instituição pública de ensino superior do país, depois que o governo Chávez ampliou o número de vagas disponíveis. Isso não impede suas críticas ao presidente, a quem define como ¿tétrico¿. Ele tem certeza de que Chávez gostaria de transformar a Venezuela numa nova Cuba, mas diz que isso não vai ocorrer. Por quê? ¿Porque somos um país muito mais rico do que Cuba. Se nossos políticos fracassarem, os estrangeiros não vão deixar, e vão intervir, fique certo disso.¿

Questionado sobre o papel que estudantes poderiam desempenhar nesse processo, dá de ombros: ¿A maioria não quer saber de política. Só quer dinheiro. Uma parte apoia Chávez. Para mim, estão loucos.¿

Para o jornalista Teodoro Petkoff, crítico persistente do governo Chávez, ¿a classe média de nosso país sempre foi mimada pelos ganhos fáceis do petróleo de muitas décadas, não se politizou e não tem muita noção de seus direitos. Quer conforto.¿

Manifestar apoio explícito a Chávez nos ambientes de classe média de Caracas pode até soar como provocação. Foi o que descobriu um turista japonês em viagem de uma semana pelo país, o professor Kumitaro Fatamura, 72 anos, que mora em Tóquio e costuma votar nos deputados do Partido Comunista japonês. Admirador a distância de Chávez, na sexta-feira Fatamura vestiu uma camiseta vermelha com o retrato do presidente da Venezuela e desceu para o café da manhã no Caracas Hilton, um dos hotéis mais caros da cidade. Virando o rosto para o lado, murmurando, a maioria dos presentes, executivos estrangeiros e parceiros locais, não conseguia conter a irritação diante de uma presença tão exótica. ¿Chávez merece aplauso pelo que tem feito pelos pobres¿, diz Fatamura.

O técnico de computação Enrique Morillo, 44 anos, é eleitor de Chávez desde o primeiro pleito. Filho de um criador de gado de raça, ele educa os filhos numa escola privada alemã, com pedagogia bilíngüe, porque acha que ¿precisam crescer com a cabeça aberta para o mundo¿. Para Morillo, ¿Chávez está tentando um novo modelo de crescimento. Sabe que o comunismo não tem valor e que o capitalismo não funciona. Quer achar uma saída para nós, latino-americanos¿.

Se ajuda a explicar muita coisa, o comportamento da economia promete pequenas novidades para 2007. A Venezuela encerrou 2006 com uma inflação de 17%, a maior do continente. O crescimento deve seguir positivo, ainda que os 10% possam cair para 6%, como admite o governo. Embora em queda, o preço do petróleo segue num patamar elevado, o que ajuda as contas de qualquer petrogoverno. Nesta situação, é difícil prever o comportamento da classe média - a menos que o ¿socialismo ou morte¿ de Chávez impeça a economia de funcionar.