Título: Adesão da Bolívia põe à prova a consolidação do Mercosul
Autor: Marin, Denise Chrispim
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2007, Economia, p. B4

A Bolívia vai obrigar o Mercosul a encarar, nesta semana, uma decisão protelada há, pelo menos, seis anos. Reunidos no Rio de Janeiro nos dias 18 e 19, os presidentes dos cinco países do bloco vão avaliar a 'oferta' de adesão plena feita pela Bolívia - recheada de contrapartidas - e terão duas alternativas: negá-la e assumir o risco político da decisão ou aceitá-la e esfacelar o modelo de união aduaneira definido no Tratado de Assunção, de 1991.

O dilema está nas exigências do governo Evo Morales de um tratamento diferenciado e da dispensa da aplicação da Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul. Para ex-diplomatas brasileiros, essa discussão tenderá a desencadear uma nova frente de descontentamentos do Uruguai e do Paraguai e ainda poderá deixar o Mercosul sem explicações para dar ao Chile e ao México, que tiveram o mesmo interesse de aderir ao bloco e não foram atendidos.

'As alianças políticas do Mercosul com Evo Morales e Hugo Chávez não vão ajudar em nada a integração regional. Essas decisões só enfraquecem os esforços do núcleo duro do Mercosul - Brasil e Argentina - para corrigir os seus problemas internos', afirmou José Botafogo Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e ex-embaixador extraordinário para o Mercosul. 'A adesão plena da Bolívia só vai agudizar a crise gerada pelo ingresso apressado e sem negociação da Venezuela', criticou o ex-chanceler Celso Lafer.

Em carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Evo argumentou que a Bolívia obteve concessão semelhante à que pleiteia agora quando ingressou na Comunidade Andina de Nações (CAN). Assim como ocorreu na adesão da Venezuela, o setor privado brasileiro não tem esperanças de ser consultado sobre o ingresso da Bolívia, afirma a consultora Sandra Rios, do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes).

A questão é que, atualmente, a Bolívia aplica tarifas de importação mais baixas que as da TEC e, para manter estabilidade interna de preços, não poderia adequar-se a uma estrutura de maior proteção comercial. No passado, as várias tentativas de maior aproximação do Chile, que também é associado do Mercosul, fracassaram porque Santiago recusou a TEC, uma vez que também pratica tarifas aduaneiras mais baixas. O mesmo ocorreu com o México.

ALTERNATIVA

No Mercosul, uma concessão como essa à Bolívia seria um tema delicado. Sandra Rios recorda que todos os pedidos do Paraguai e do Uruguai de tratamento diferenciado e de flexibilidade na aplicação da TEC foram recusados. Nos últimos 12 anos do Mercosul, essa situação acentuou as assimetrias entre as economias do bloco e estampou o fato de a integração não ter resultado em benefícios inequívocos para o Uruguai e o Paraguai. Na prática, levou esses países a ameaçarem com a maior aproximação com os Estados Unidos.

Essa situação reforça a tendência de, no Rio de Janeiro, os presidentes buscarem uma acomodação intermediária. Essa alternativa seria a criação de um grupo de trabalho para tratar do assunto, com prazos que tenderão a ser postergados, e a atribuição de uma nova designação para a Bolívia. Por exemplo, como 'país em processo de adesão'. Ou seja, a rigor, a Bolívia continuaria a ser o que é: um país com acordo de livre comércio com o bloco desde 1996, mas não membro pleno.

O Itamaraty argumenta que a política de expansão do Mercosul tem o objetivo de torná-lo mais efetivo nos campos político e social. Também amarra um número maior de países à união aduaneira, com o compromisso de respeito ao livre comércio entre os sócios e à TEC. Em especial, os obriga a cumprir cláusula democrática. Trata-se de um instrumento do Mercosul que se mostrou eficaz para conter golpes de Estado, como a tentativa de 1998 no Paraguai, mas ainda é débil para apontar falhas e ameaças de rupturas nos modelos institucionais.

O dilema está no custo dessa política. Para ampliar o escopo do Mercosul e conseguir maior estabilidade política na região, os cinco sócios plenos terão de decidir se pagarão ou não o preço da flexibilização da esfera econômico-comercial do bloco. 'Não há certeza se essa exceção para a Bolívia será temporária ou se haverá mudança do perfil do bloco', disse um negociador. 'Será uma decisão política. Mas penso que o núcleo do processo de integração não pode ser avacalhado.'

BRIGAS INTERNAS

A reunião do Mercosul será igualmente marcada por conflitos internos que se arrastam há anos. Como ocorreu no encontro de chanceleres e ministros de Economia do Mercosul, em dezembro, a Cúpula do Rio não ficará ilesa da 'guerra da celulose' - o conflito entre Argentina e Uruguai em torno da construção de uma fábrica de celulose na fronteira dos dois países, do lado uruguaio, e dos bloqueios à circulação de pessoas e de mercadorias organizado por manifestantes argentinos contrários ao empreendimento.

Os presidentes Néstor Kirchner, da Argentina, e Tabaré Vázquez, do Uruguai, evitam aproximações em público por conta do imbróglio, que foi submetido à Corte Internacional de Justiça de Haia. Há quase um ano, o governo brasileiro escapa de ser 'convidado' para intermediar o conflito - missão que acabou nas mãos do rei da Espanha, Juan Carlos. O dilema entre Argentina e Uruguai, entretanto, cala mais fundo no Mercosul. O bloco jamais conseguiu negociar uma política comum sobre temas como investimentos e meio ambiente.

O Mercosul tampouco foi capaz de costurar um conjunto de normas para a aplicação de medidas de defesa comercial - antidumping e compensatórias - entre os sócios. Essa última omissão está no centro da controvérsia aberta na semana passada pela Argentina contra o Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), questionando medidas antidumping aplicadas contra as importações de resina PET argentina. A ausência desse acordo enfraquece o Tribunal Permanente de Revisão, órgão do Mercosul que não se mostrou capaz de julgar um caso similar no passado.