Título: O aprendiz de Hugo Chávez
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/01/2007, Notas e Informações, p. A3

O presidente Evo Morales não dá ponto sem nó. Na quarta-feira passada, como resultado de uma forte pressão exercida pelos seis governadores provinciais da oposição - só três governadores o apóiam -, ele voltou atrás numa decisão que atropelara a Lei de Convocação da Assembléia Constituinte. A lei, por ele próprio sancionada logo após ter assumido o governo da Bolívia, determinava que os artigos da futura constituição teriam de ser aprovados por maioria de dois terços dos deputados constituintes. Como Morales não conseguiu fazer essa maioria qualificada nas eleições parlamentares, decidiu por conta própria que a constituição será aprovada por maioria simples (metade dos votos mais um). No mês passado, os governadores de oposição organizaram grandes manifestações - os cabildos populares - para forçar Morales a revogar o golpe branco que aplicara à Constituinte e a respeitar a decisão do plebiscito realizado em dezembro, que determinou que o governo central deveria dar autonomia política, administrativa e financeira às províncias.

O presidente cedeu no primeiro ponto. Mandou o vice-presidente Alvaro Garcia Linera comunicar à oposição, em nome de seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS), que a constituição será aprovada por dois terços. Mas, isso, se o texto final for aprovado até 2 de julho. Caso contrário, o MAS voltará à antiga posição. Ou seja, deixou claro que o que rege a Bolívia não são as leis, mas a vontade do autoproclamado intérprete da vontade popular, o presidente Morales.

Quanto à segunda reivindicação, a autonomia dos Estados, incumbiu os ¿movimentos sociais¿ que controla de dar a resposta imediata. Na quinta-feira, mais de 20 mil camponeses e cocaleros, vindos de diversos pontos do país, reuniram-se na praça central de Cochabamba e, reclamando a renúncia do governador Manfred Reyes Villa, iniciaram uma verdadeira batalha campal com partidários do governador e um quebra-quebra que culminou com o incêndio de parte do palácio do governo. A polícia interveio e o saldo final do conflito foi de 2 mortos e cerca de 200 feridos.

A reação de Evo Morales a essa grave perturbação da ordem pública foi a que dele se esperava. Demitiu o chefe de polícia e explicou que o fazia como reiteração de sua política de ¿repressão zero¿. Isso simplesmente quer dizer que os ¿movimentos sociais¿ que o apóiam estão acima da lei e podem fechar estradas, espancar oponentes, ocupar ou incendiar prédios públicos e ameaçar a integridade física de autoridades eleitas, sempre que lhe der na telha ou for conveniente aos propósitos políticos de seus mentores.

O governador Manfred Reyes Villa, para não ser linchado, buscou refúgio na província vizinha de Santa Cruz - que por enquanto está imune à ação das hordas de Morales. O aplicado discípulo do caudilho Hugo Chávez, por sua vez, pediu aos baderneiros que se abstivessem de ¿atos de vingança¿, comando que foi prontamente atendido com a imediata cessação da desordem.

Os acontecimentos de Cochabamba foram cuidadosamente premeditados por Evo Morales. Ao anunciar o seu recuo na questão dos dois terços, ele afirmara que a ¿revolução democrática e cultural¿ da Bolívia já não dependia da Assembléia Constituinte, mas de seu governo e dos movimentos sociais. A essa ameaça de ruptura institucional seguiu-se a ação em Cochabamba.

O local não foi escolhido ao acaso. Foi lá que Morales iniciou sua carreira como líder cocalero e depois como político populista. Mas, nas eleições provinciais, o seu candidato foi derrotado folgadamente por Reyes Villa. E o governador, além de fazer-lhe oposição em sua própria casa, ainda ousou anunciar que convocaria um plebiscito para que a população de Cochabamba pudesse rever a sua decisão - adotada em julho - de não reivindicar autonomia. Diante da real possibilidade, antecipada pelo cabildo de dezembro, de Cochabamba tornar-se a quinta província a requerer autonomia - o que tornaria inevitável o exame da questão pela Constituinte - Evo Morales desaçaimou a sua horda.

Não tendo conseguido tirar Reyes Villa do governo pela força, Evo Morales propõe agora a aprovação de uma lei que permita a destituição, pelo voto popular, de autoridades que ¿não cumpram seus compromissos¿. O que Evo Morales quer é governar sem oposição e sem ter de obedecer às leis. Aprendeu com Hugo Chávez.