Título: Saneamento - será que desta vez vai?
Autor: Novaes, Washington
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2007, Espaço Aberto, p. A2
Logo que o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei com o marco regulatório para o saneamento, os jornais trouxeram declarações de governantes e empresários anunciando que afinal estavam dadas as condições para eliminar o gigantesco déficit na área, que exige investimentos entre R$ 200 bilhões e R$ 220 bilhões em dez anos. Bastaram, entretanto, alguns vetos presidenciais à Lei 11.445/07 para que praticamente todas as dúvidas retornassem.
Independentemente do veto, a própria extensão do déficit continua mergulhada em indefinições. Dizem os Indicadores do Desenvolvimento Sustentável (IBGE, 2004) que 91,3% das residências urbanas estão ligadas a redes de abastecimento de água e 51,6% dos domicílios nas cidades dispõem de redes de esgotos, enquanto 23,3% têm fossas sépticas. Já o último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento considera que 75% das residências urbanas no País têm ¿saneamento adequado¿, aí incluídas ligações a redes de esgotos e fossas sépticas. É um conceito que nem todos os especialistas na área aceitam, porque as fossas podem resolver o problema dos moradores, mas nas grandes cidades levam as águas poluídas por esgotos às redes de drenagem pluvial e aos cursos d¿água.
Por outro lado, quando se fala no déficit, costuma-se deixar de lado o tratamento dos esgotos. Admitindo que 90 milhões de pessoas tenham seus esgotos coletados no País, à razão de 200 litros diários por pessoa, serão 18 bilhões de litros/dia. Como se afirma que 35% desses esgotos são tratados, restariam quase 12 bilhões de litros diários despejados nos rios ou no mar sem tratamento. Se a eles se acrescentar - como lembra o sanitarista José Carlos Mello Rodrigues - a produção das fossas que vai para as redes de drenagem, vai-se ter um déficit colossal, que ajudará a entender por que 70% das internações na rede pública de saúde se devem a doenças transmitidas pela água; e que 80% das consultas pediátricas têm a mesma causa. Sem falar que é primária a maior parte do tratamento que é feito com esgotos coletados pelas redes; ou seja, metade da carga orgânica é devolvida aos cursos d¿água sem tratamento. E sem falar em outros tipos de poluição da água.
Seja como for, a Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais calcula que, no ritmo atual de investimentos, o déficit só será eliminado em 2060. O noticiário parece confirmar: a União empenhou R$ 12,9 bilhões para o saneamento entre janeiro de 2003 e setembro do ano passado (Jornal do Brasil, 12/12/2006); em quatro anos a União transferiu R$ 13 bilhões para Estados e municípios, diz o ministro Márcio Fortes (Agência Brasil, 6/1/2006); têm sido aplicados 0,22% do PIB a cada ano, pouco mais de R$ 3 bilhões, informou este jornal (15/1/2006).
Parece, de qualquer forma, não estarem incluídos nesses números eventuais custos de despoluição dos cursos d¿água da carga de esgotos domésticos e industriais. E se essa despoluição não ocorrer, adverte Carlos Motta Antunes, da Agência Nacional de Águas, poderá haver colapso no abastecimento de água no Sul, no Sudeste e em áreas metropolitanas. Estudo recente do professor Enéas Salatti, da Fundação Brasileira de Desenvolvimento Sustentável, já identificou muitas das áreas em que isso poderá acontecer, a começar pela região de Paulínia (SP).
Não bastassem todas essas dificuldades, a lei aprovada pelo Congresso deixou sem solução um ponto decisivo e os vetos presidenciais ao projeto trouxeram de volta outros impasses. O projeto não definiu a questão da titularidade dos serviços de saneamento nas regiões metropolitanas, onde as redes de água e esgotos de vários municípios costumam ser interligadas e operadas por empresas estaduais. Estas são as titulares ou os municípios, como diz a Constituição federal? A definição ficou para o Supremo Tribunal Federal (STF), onde a questão está desde 1998. E sem ela é complicado pensar em novos investimentos nessas áreas.
Já os vetos presidenciais atingiram em cheio a definição dos investimentos necessários. Foram vetados, a pedido dos Ministérios da Fazenda e do Trabalho, incentivos fiscais aos investimentos em saneamento e o uso do FGTS, diretamente ou por meio de fundos de investimento, em infra-estrutura ou saneamento. Houve quem previsse uma renúncia fiscal de R$ 12,5 bilhões. Agora, anuncia-se (Estado, 10/1) que o presidente criará outro fundo com R$ 5 bilhões, dos quais 30% seriam para o saneamento. A ver. E a Federação dos Urbanitários reclama que os vetos atingiram a parte do projeto que previa a participação da sociedade e dos consumidores nos instrumento de gestão do saneamento.
Continua-se, portanto, sem saber de onde virão os recursos, quem poderá deles se utilizar (com o endividamento estadual e municipal nas alturas em toda parte), como serão pagos. Já que a maior parte do déficit do saneamento está nas áreas de população mais pobre e sem condição de arcar com novos ônus, ficam as perguntas: haverá subsídios? De quem? Ou só se implantarão novos serviços nas áreas em que os moradores poderão amortizar, nas tarifas, os empréstimos? E, se o STF decidir pela titularidade dos municípios nas áreas metropolitanas, como se fará para separar as redes, amortizar as empresas estaduais que nelas investiram ou dividir a receita das tarifas? Se os municípios resolverem privatizar os serviços, quem pagará pelos novos investimentos, já que as empresas concessionárias, evidentemente, não aceitarão arcar com prejuízos?
Vê-se, assim, que na verdade praticamente tudo continua sem definição num dos mais graves problemas sociais do País. Será que também desta vez não vai?